Vista da Marechal Deodoro, altura do Cine São Bernardo - 28/03/1967 - Acervo da Seção de Pesquisa e Documentação

 

Pequena história de São Bernardo do Campo
 
 
João Ramalho e a Vila de Santo André da Borda do Campo
 
Conforme tradição oficializada no século XX, a idade de São Bernardo é contada a partir de 1553, data da fundação da Vila de Santo André da Borda do Campo por João Ramalho. No entanto, a localização precisa dessa vila ainda hoje é incerta, não havendo dela qualquer registro arqueológico conhecido. O historiador beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus acreditava que ela se situava no local onde se instalaria, no século XVIII, a Fazenda São Bernardo, pertencente aos monges da Ordem de São Bento (área que atualmente integra a cidade de São Bernardo). Mais recentemente, contudo, o pesquisador Wanderley dos Santos defendeu a tese de que a vila localizava-se no vale do Ribeirão Guarará, em território do atual município de Santo André. Outra questão enigmática é a origem de João Ramalho: alguns estudiosos, como o escritor Afonso Schmidt, suspeitavam que ele seria um judeu degredado; outros pesquisadores, como Afonso de Taunay (baseando-se em J. F. de Almeida Prado), levantaram a hipótese dele ter naufragado no litoral paulista, por volta de 1508. Sabe-se que, após chegar ao Brasil, passou a viver no planalto paulista com os nativos e envolveu-se nos conflitos tribais. Casou-se e teve filhos com Bartira, filha de um líder dos Tupiniquins, o cacique Tibiriçá. Em 1532, quando Martim Afonso de Souza ancorou na costa paulista, encontrou-o vivendo entre os nativos. Ramalho acabaria se tornando intermediário na relação de Martim com os índios, ajudando-o a fundar a Vila de São Vicente, primeira cidade do Brasil. Pouco mais de duas décadas depois, em 8 de abril de 1553, a aldeia em que Ramalho vivia, no planalto, foi oficializada pelo governador geral Tomé de Souza, recebendo o nome de Vila de Santo André da Borda do Campo. Ramalho foi nomeado Alcaide (cargo semelhante ao de Prefeito). Os padres jesuítas, que já possuíam um colégio na Vila de São Vicente, obtiveram autorização para instalar outro, que receberia o nome de Colégio de São Paulo, situado numa colina entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, nos limites do rocio de Santo André. 
 
Em 1560, tendo se formado um bairro no entorno do colégio dos jesuítas, e estando a Vila ameaçada por ataques frequentes dos índios carijós, o Governador Geral do Brasil, Mem de Sá, ordenou a transferência do povoado para as imediações do Colégio, o que deu origem à cidade de São Paulo, extinguindo-se assim o povoamento original de Santo André da Borda do Campo.
 
Os monges beneditinos e o povoamento da região
 
No século XVII, registros mostram que a região era ocupada por alguns lavradores e criadores de gado dispersos nas vastas terras daquela área, que era conhecida como Borda do Campo, vinculada à Vila de São Paulo e cortada pelo caminho de Santos. Na população havia um grande contingente de mamelucos, originados do contato entre o colonizador português e as mulheres nativas. A presença da mulher branca européia ainda era relativamente incomum na colônia naqueles tempos.
 
Em 1637, Miguel Aires Maldonado doaria aos monges beneditinos uma sesmaria, herdada do seu sogro Amador de Medeiros, que abrangia áreas na localidade. A ocupação pelos monges das terras doadas só se daria em princípios do século XVIII, quando lá instalaram uma fazenda, cuja sede ficava entre o Ribeirão dos Meninos e o antigo caminho de mar, próxima ao local onde hoje se encontra a confluência das avenidas Vergueiro e Kennedy. Ali, em 1717, o Abade Frei Bartolomeu da Conceição ordenara a construção de uma capela dedicada a São Bernardo. Nesta ocasião, uma imagem do santo, esculpida no século XVII pelo Frei Agostinho de Jesus, foi transferida do Mosteiro de São Bento, em São Paulo, para ocupar a nova ermida. Batizada “São Bernardo”, a fazenda dos monges emprestaria o nome à região, que passaria a ser conhecida como bairro de São Bernardo.1
 
Nessa época, a configuração étnica de todo o sudeste brasileiro mudava com o início do fluxo de escravos africanos, proporcionado inicialmente pelo ciclo do ouro em Minas Gerais e, no final desse século, pelo desenvolvimento da agricultura exportadora de cana na capitania de São Paulo. Mesmo na região de São Bernardo, onde a agricultura de subsistência continuou predominando e ainda floresciam as atividades vinculadas ao transporte de mercadorias, o escravo negro também se fez presente na população. Com efeito, havia algumas fazendas com mais de trinta escravos, como a dos próprios beneditinos, embora ainda predominasse na região as famílias pobres e sem escravos, de brancos, mamelucos, negros e pardos livres – estes dois últimos grupos compostos por forros e suas descendências.
 
   
 A economia local seria impactada com a construção da calçada do Lorena (1789-1791), no trecho da serra do caminho do mar. Com a calçada, o transporte de mercadorias (principalmente o açúcar) por meio de muares até o litoral foi facilitado e São Bernardo, estrategicamente posicionada entre Santos e São Paulo, teria no tropeirismo um dos principais meios de vida dos seus habitantes durante boa parte do século XIX.
 
 
Monumento Padrão do Lorena - Calçada do Lorena, 1985. Foto de Mário Ishimoto.
 
 
Do surgimento da Freguesia de São Bernardo à decadência do tropeirismo 
 
No ano de 1805, sensível à necessidade da população do bairro de dispor de serviços religiosos de forma contínua e em local próximo de seus lares, o Bispo Diocesano Dom Mateus de Abreu Pereira transformou a igrejinha dos monges em capela curada, determinando a presença de “capelão secular a fim de lhes dizer missa e lhes administrar todos os sacramentos”2. A atitude do bispo desagradou aos monges, que enxergavam nela uma interferência indevida sobre a capela que lhes pertencia. Iniciou-se aí um conflito que envolvia os monges, as autoridades diocesanas e os interesses populares. Em 23 de setembro de 1812, foi determinada a criação da Freguesia e da Paróquia de São Bernardo, cuja sede deveria ser na capelinha dos monges e que abarcava em seus limites toda a região do atual ABC. Mas, os religiosos pressionaram e, em janeiro de 1814, uma determinação do príncipe regente definia que a ermida dos beneditinos só deveria ser utilizada provisoriamente como matriz. O padre nomeado para assumir a freguesia, José Basílio Cardim, resolveu então construir uma capela provisória em outro terreno, também em território beneditino, próximo ao que seria hoje o Km 20 da Via Anchieta. Embora nesse caso os frades não tenham se oposto à utilização da área, a qual arrendaram ao padre, o local se revelou inviável por situar-se “na coroa de um estéril outeiro, sem águas e batidos de impetuosos ventos”, que dificultavam muito as atividades do sacerdote.  Outro local teve que ser escolhido: a solução encontrada foi uma área a 600 passos dali, escolhida pelo Tenente Coronel Daniel Pedro Muller, membro do real corpo de engenheiros, que fora encarregado de resolver o problema. O terreno, pertencente à fazenda do lavrador Manoel Rodrigues de Barros, foi cedido à igreja, que lá erigiu primeiramente a capela de Nossa Senhora da Boa Viagem (1814), a qual funcionou provisoriamente como sede da paróquia até a inauguração, nas mesmas terras, da Igreja Matriz, em 1825.  
 
                  Capela Nossa Senhora da Boa Viagem, déc. 1950                                                 Vista parcial da Praça da Matriz e Capela Nossa Senhora da Boa  Viagem,                                                                                                                                                                               1958                   
 
No entorno do largo da Matriz, poucos anos depois (em 1833), se definiria o primeiro perímetro urbano da freguesia, com a demarcação de suas cinco primeiras vias, hoje conhecidas como Marechal Deodoro, Santa Filomena, Dr. Flaquer, Rio Branco e Padre Lustosa.
 
Marechal Deodoro, década de 1890.
 
Os primeiros traços do centro da cidade esboçavam-se justamente numa época de grande circulação de tropeiros e viajantes pelo caminho do mar, movimento impulsionado pela lavoura de açúcar paulista, que continuava em ascensão. Junto com o açúcar, o tropeirismo – tanto na região como em toda a província – também atingia sua época áurea, uma vez que eram as tropas de mulas as únicas responsáveis pelo escoamento do produto até o litoral.
 
Todavia, a partir de 1850, ficou evidente às autoridades paulistas o entrave que o transporte por meio de muares representava à agricultura de exportação: a lentidão excessiva, os desperdícios em estradas que permaneciam ruins mesmo com uma manutenção frequente e a precariedade dos ranchos e pousos encareciam excessivamente os custos e tornavam inviável a expansão da lavoura para regiões muito distantes do porto de Santos. Portanto, a construção de linhas ferroviárias, já num momento em que o café havia tomado a hegemonia do açúcar na pauta de exportações da província, garantiu um enorme barateamento no transporte da produção agrícola paulista. Elas foram, sem sombra de dúvida, fatores essenciais para o vertiginoso desenvolvimento que São Paulo alcançou no final do séc. XIX.
 
No entanto, com o estabelecimento das linhas férreas, foi inevitável a decadência do tropeirismo e com ela também o abandono do caminho do mar, uma vez que, desde 1867, a função dele passou a ser cumprida de forma muito mais eficiente pela estrada de ferro Santos-Jundiaí, cujo trajeto passava pelas áreas das atuais cidades de Santo André e São Caetano. A freguesia, que tinha no transporte por muares um dos seus alicerces, sentiu grandemente o impacto, conforme relatado por testemunhas da época como Azevedo Marques, Junius e Rafardi. Seu revigoramento só ocorreria com a  chegada da imigração europeia, alguns anos depois.
 
Vista da região central de São Bernardo do Campo. Anterior a 1902.
 
A imigração, os núcleos coloniais, e a criação do município
 
Entre 1877 e 1897, o território de São Bernardo recebeu intenso fluxo migratório de estrangeiros, que vinham para ocupar núcleos coloniais recém-criados pelo governo imperial. Aqui chegando, os colonos recebiam lotes, distribuídos pela Comissão Estadual de Colonização, nos quais deveriam, dentro do prazo de seis meses, roçar e plantar uma área mínima de mil braças quadradas, com a respectiva construção de uma casa com, pelo menos, 400 palmos quadrados. O colono somente teria direito à obtenção do título definitivo da propriedade após seu pagamento integral e desde que totalmente saldados quaisquer outros débitos à Fazenda Nacional. Enfrentando enormes dificuldades, que iam da necessidade da derrubada da mata nativa às grandes distâncias que separavam suas terras dos centros comerciais, além da ausência de uma infraestrutura urbana mínima, os imigrantes dedicaram-se inicialmente ao cultivo da uva, da batata, do milho, do feijão, da mandioca, à extração de madeira e à produção do carvão.
 
Ao todo foram abertas em São Bernardo 15 linhas coloniais, com 941 lotes ao total, sendo 146 urbanos e 795 rurais, embora nem todos os lotes disponibilizados fossem ocupados (foram efetivamente ocupados 545, de 13 linhas). Um relatório de 1907, feito pela Agência de Colonização, mostra que nas linhas residiam 403 famílias, sendo 239 italianas, 60 brasileiras, 53 polaco-russos, 22 austríacas, 19 alemãs, 3 portuguesas, 2 árabes, 1 húngara, 1 espanhola, 1 francesa, 1 suíça e 1 cubana. As famílias italianas, compostas principalmente de camponeses vindos majoritariamente da região do Veneto (55%) e Lombarda (38%), ocuparam a maior parte das linhas. Já os polacos russos, assim chamados porque o território polonês estava sob o domínio russo, fixaram-se nas linhas Rio Pequeno, Capivary e Bernardino de Campos. Os brasileiros eram em sua maioria moradores antigos, que moravam naqueles territórios antes mesmo da criação das linhas.
 
Casarão do Bonilha que, dentre outras funções, abrigou hospedaria de imigrantes, 1890.
 
 
O impacto da chegada de estrangeiros na demografia local pode ser mensurado pelo censo de 1900, que mostra uma população de 10124 habitantes no recém-criado município de São Bernardo, número quase quatro vezes maior ao registrado no censo de 1872. Mas a chegada de imigrantes de outros países não pararia ali: a partir da década de 1930 a cidade começaria a receber considerável leva de imigrantes japoneses, que se estabeleceriam na colônia Mizuho, no atual Bairro Cooperativa.
 
O crescimento populacional ocorrido em função da imigração foi uma das justificativas que permitiram que a freguesia pleiteasse sua autonomia em relação à cidade de São Paulo, o que de fato ocorreu treze anos após o estabelecimento do primeiro núcleo colonial. Alguns imigrantes, inclusive, participaram do grupo de moradores que lutou pela autonomia junto às autoridades provinciais, grupo do qual também fazia parte políticos locais, o padre Lustosa e antigos sitiantes brasileiros.
 
Antiga Igreja Matriz, 1930
 
O processo que resultou na criação do novo município teve início em 1888 com a apresentação de um requerimento e um abaixo-assinado, por parte dos habitantes da então Freguesia, à Câmara Municipal de São Paulo; e com o encaminhamento do projeto de lei 83, de autoria do deputado Lopes Chaves, à Comissão de Estatística da Assembleia Legislativa Provincial. Após longo período de tramitação, o projeto foi aprovado pela Assembleia Provincial em 27 de fevereiro de 1889. Pouco tempo depois, em 12 de Março de 1889, a lei n.38 foi sancionada pelo Presidente da Província, Pedro Vicente de Azevedo, oficializando-se assim a criação do Município de São Bernardo.
 
 
Todavia, a instalação efetiva do município – fundamental para que o mesmo pudesse eleger suas autoridades e arrecadar seus impostos – só viria a acontecer em 2 de Maio de 1890, após novos trâmites burocráticos e envio de novo abaixo-assinado dos moradores da cidade, desta vez à Secretaria de Governo do Estado. A instalação da Câmara dos Vereadores de São Bernardo aconteceu no dia 29 de Setembro de 1892, data da posse de sua primeira legislatura.
 
Prédio da antiga Câmara Municipal, atual Câmara de Cultura Antonino Assumpção, 1992.
 
As primeiras décadas do Séc. XX e os primórdios da industrialização
 
Quando se desmembrou de São Paulo e se tornou município em 1890, São Bernardo englobava em seus limites toda a região do atual ABC paulista. A sede da administração era localizada na Rua Marechal Deodoro, primeiramente num antigo casarão que ficava onde atualmente está a Praça Lauro Gomes, depois na construção situada na altura do número 1325, espaço em que hoje funciona a Câmara de Cultura. Locais que se tornariam ulteriormente grandes cidades como São Caetano, Mauá e Ribeirão Pires eram, nestes primeiros tempos, bairros ou distritos pertencentes ao Município de São Bernardo. O chamado Bairro da Estação (atualmente Santo André), de início integrando o Distrito de Sede junto com territórios que atualmente compõem São Bernardo do Campo, foi desmembrado em 1910, surgindo daí o Distrito de Santo André, a exemplo do que ocorreria com São Caetano em 1916 e ocorrera com Ribeirão Pires em 1896.
 
Além de centralizar a administração política, a área correspondente à atual São Bernardo do Campo gozava, nos primórdios do séc. XX, de um desenvolvimento econômico superior aos demais bairros ou distritos que integravam o antigo município: dados estatísticos datados de 1909 indicam que os são-bernardenses contribuíam com a maior parcela da arrecadação municipal, com 28% do seu total, seguidos pelo Bairro de Santo André, com 20%, o Distrito de Ribeirão Pires com 17% e Paranapiacaba com 11%.3 Sua força econômica vinha principalmente da fabricação de carvão e do corte de madeira: segundo o livro de indústrias e profissões de São Bernardo de 1910, havia nesse ano, em regiões pertencentes aos limites do atual município, 68 carvoarias e 18 serrarias4. Além disso, florescia nesses tempos, pela atividade pioneira de João Basso, a indústria de móveis, que se tornaria marca da cidade por muitas décadas. Havia ainda, localizadas na Rua Marechal Deodoro como a fábrica de Basso ou em suas circunvizinhanças, indústrias voltadas para a produção de outros gêneros simples, como cervejas e licores (como na fábrica de Carlos Prugner), charutos (nas firmas de Setti e Stefanini), e sabão (de Carlos Herber).
 
    
               Fábrica de móveis e cadeiras  Cassetari,   década de 1920                                          Funcionários da Fábrica de Charutos A Delicia de propriedade
                                                                                                                                                        do Sr. Ítalo Setti, 1904
 
 
Contudo, a partir de uma lei de 1911, que concedia benefícios fiscais às empresas que se estabelecessem no município, a hegemonia econômica da Sede começou a se esfacelar: nas décadas de 10 e 20 muitas grandes empresas vieram, preferindo a maior parte se instalar em locais próximos à estação ferroviária, favorecendo o Distrito de Santo André, que passou a se desenvolver num ritmo muito mais acelerado que São Bernardo.
 
Paralelamente a isso, São Bernardo teria, a partir de 1927, parcela de seu território inundando com a construção da represa Billings, que represou as águas do Rio Grande e do Rio das Pedras, a fim de gerar eletricidade na usina Henri Borden, em Cubatão.
 
  
                 Represa Billings, 1988. Foto de Mário Ishimoto                                                          Represa Billings, sem data
 
Os anos 30 marcariam o acirramento da rivalidade no âmbito político entre a sede e o distrito andreense, algo que as rixas futebolísticas entre “batateiros” são-bernardenses e “ceboleiros” de Santo André espelhavam claramente. O distrito já era uma potência de maior vulto que a Vila de São Bernardo, contendo indústrias multinacionais de grande porte como a Rhodia e a Pirelli, enquanto que em território são-bernardense as fábricas existentes (nessa década já predominavam aqui  as fábricas de móveis) eram basicamente pequenos e médios empreendimentos de base familiar, sem a mesma estatura que as empresas de Santo André.
 
Rua Marechal Deoodoro - Fábrica de Móveis São Bernardo, déc. 1950
 
Simultaneamente a esse desenvolvimento, surgia nos andreenses a ambição de transferir a sede municipal para o seu território. De maneira ilegal, os prefeitos já despachavam em Santo André, mesmo que oficialmente a sede ainda não tivesse sido transferida. As disputas eram agravadas com a atuação de prefeitos que procuravam concentrar suas ações nas regiões em que eram mais vinculados politicamente: na gestão de Felício Laurito (1933-1938), por exemplo, foram escassos os investimentos realizados em São Bernardo, região com a qual Laurito tinha poucos laços. Ia se tornando cada vez mais difícil estabelecer prioridades administrativas sem desagradar a ninguém num município de tamanha dimensão, possuindo distritos economicamente robustos e com grupos políticos organizados, fortes o suficiente para reivindicar suas demandas.
 
O rebaixamento a distrito e a emancipação de São Bernardo
 
Em 1938, o país vivia sob a ditadura de Getúlio Vargas. O ditador nomeava os interventores estaduais e lhes dava plenos poderes para rebaixar municípios a distritos, elevar estes à condição de cidade e para nomear prefeitos. Em 30 de novembro de 1938, depois de uma articulação de políticos andreenses, o interventor estadual, Ademar de Barros, assinou um decreto transferindo a sede do município de São Bernardo para Santo André, sendo a antiga Vila de São Bernardo rebaixada a mero distrito.
 
Descontentes com a humilhante situação enfrentada pela cidade, um grupo que reunia empresários, comerciantes, profissionais liberais, funcionários públicos, operários e populares começou a se reunir para discutir a emancipação de São Bernardo. Sem grande prestígio político junto ao governo, esse grupo pouco podia fazer para recuperar a autonomia de São Bernardo.
 
 
 
As reuniões do movimento autonomista aconteciam no "Bar e Café Expresso", que ficava na esquina da Marechal Deodoro com a Rua Dr. Flaquer. Bortolo Basso, dono do estabelecimento, sugeriu que o grupo procurasse o banqueiro Wallace C. Simonsen, proprietário de uma chácara na cidade (hoje conhecida como Chácara Silvestre). Empresário de prestígio nacional, Simonsen forneceria a força política que faltava ao grupo.
Bar e Restaurante Cruzeiro (Bar e Café Expresso, déc. 1940
 
 
 
Em maio de 1943, sob a liderança de Wallace C. Simonsen, aconteceu a fundação da Sociedade dos Amigos de São Bernardo. Criada com o objetivo principal de coordenar a luta pela emancipação, a sociedade contava com a participação de Pery Ronchetti, Nerino Colli, Ítalo Setti, Gabriel Nicolau, Plínio Ghirardello, Bortolo Basso, entre outros. 
 
 
 
Chácara Silvestre, 1937
 
Aproveitando-se de uma reforma administrativa visando a criação de municípios em todo o estado, que à época estava sendo planejada pelo governo estadual, o grupo solicitou a emancipação do então distrito de São Bernardo, alegando que o crescimento local – em termos de contingente populacional, arrecadação de impostos, etc. – era suficiente para justificar o pedido.
 
Graças à persistência desse grupo e à influência política de Wallace C. Simonsen, o decreto-lei 14.334 de 30/11/1944, que estabelecia a nova divisão político-administrativa do Estado de São Paulo, elevou novamente o distrito de São Bernardo à categoria de município. No dia 1° de Janeiro de 1945, o novo município foi instalado, agora com o denominativo ”do Campo" agregado ao nome "São Bernardo". Wallace C. Simonsen foi nomeado prefeito e governou a cidade até 1947.
 
 
Wallace Simonsen (4º da esq. para dir.) no dia da instalação do município (01-01-1945),
em frente ao antigo prédio da prefeitura, atual Câmara de Cultura
 
 
A industrialização de São Bernardo e a transformação em metrópole
 
A inauguração da Via Anchieta, em 1947, marca o início de uma fase de acelerado crescimento em São Bernardo.
Incentivadas pelas facilidades logísticas proporcionadas pela estrada, pela presença de mão-de-obra razoavelmente qualificada na região e também por alguns incentivos fiscais concedidos, um grande número de empresas estrangeiras se instalam na cidade.
 
                 Vista da Vila Bechelli, na região central de São Bernardo do Campo, 1951             Via Anchieta Km 18,  1968
 
 
Em consequência da vinda de gigantescas indústrias automobilísticas como a Ford, Scania e Volks e de múltiplas fábricas de autopeças como a Perkins, Gemmer e Mangels, a cidade converte-se, nas décadas de 50, 60 e 70, num dos principais polos industriais do país. Essas indústrias e o enorme contingente de mão-de-obra que elas absorviam (contingente que aumentava exponencialmente com a chegada de migrantes de várias regiões do país) possibilitaram que a administração municipal aumentasse sua arrecadação dezenas de vezes, transformando-se numa das prefeituras mais ricas do Brasil. 
Via Anchieta, 1988. Foto de Mário Ishimoto        
 
  
               Construção da  Volkswagen 1956                                                                                Linha de montagem da Volkswagen, 1964
 
 
Rapidamente a pequena vila do início do século XX deu lugar a uma grande metrópole: o número de habitantes que era de 29 mil em 1950, alcançou em 1980 a marca dos 425 mil, dos quais 292 mil eram migrantes, conforme indicava o censo do IBGE realizado naquele ano.
 
Rua Marechal Deodoro, 1967
 
 
Segundo o mesmo censo, até aquele momento, os maiores centros exportadores de migrantes para a região haviam sido o próprio estado de São Paulo (54,6% do total da migração interna), Minas Gerais (14,6%), Bahia (7,4%), Pernambuco (5,4%), Paraná (5,3%) e Ceará (3,8%). Entre as regiões, o sudeste respondia por 68% do total da migração interna e em seguida vinham o nordeste (24%), o sul (6,1%), o centro-oeste (0,8%) e o norte (0,2%). 
 
 
 
 
 
Como resultado da expansão populacional, as chácaras e sítios dos velhos núcleos coloniais deram lugar a novos loteamentos urbanos, regulares ou irregulares, transformando inteiramente as feições de bairros antigos e criando novos aglomerados.
 
 
 
 
Praça Lauro Gomes, déc. 1960
 
 
 
 
No final da década de 1970, época em que chegava ao fim uma fase de crescimento econômico acelerado do país, o ainda elevado incremento demográfico da cidade já não era mais inteiramente absorvido em seus bairros mais bem localizados, que agora possuíam elevados contingentes populacionais.
 
 
 
Vista Aérea, Paço Municipal e entorno. Década de 1970
 
 
 
                         Calçamento da Avenida Faria Lima por volta            Bairro Rudge Ramos, 1988.                                      Av. Lucas Nogueira Garcez, déc. 1970
                         de 1970                                                                      Foto de Mário Ishimoto
 
Ao mesmo tempo em que se valorizavam os espaços ainda existentes nestas áreas, também se intensificava a ocupação irregular de áreas impróprias para o estabelecimento de núcleos residenciais, facilitada ou até mesmo incentivada por políticos locais e pela omissão do poder público. Locais como as zonas de mananciais do Alvarenga ou áreas de intensa declividade como as do Montanhão foram, não por acaso, as que mais cresceram a partir da década de 80: os bairros do Montanhão e Alvarenga tinham, em 1980, respectivamente 12 mil e 8 mil moradores; já em 2000, a população do primeiro atingia a marca dos 84 mil habitantes e a do segundo 54 mil. Atualmente, 52% das residências em condições precárias da cidade estão contidas nesses 2 bairros5.
 
                 Vista aérea do bairro Montanhão, 1988. foto de Mário Ishimoto.                                  Vista Aérea -  Vila São Pedro e entorno, década de 2000
 
Paralelamente ao crescimento industrial e urbano, se desenvolveu na cidade um sindicalismo fortemente organizado e com grande poder reivindicatório, o que levou São Bernardo, durante as crises econômicas do final dos anos 70 e início dos 80, a ser o palco de alguns dos mais incisivos movimentos grevistas já ocorridos na história do país.
Na década de 90, a cidade foi afetada pelo impacto das grandes alterações ocorridas na economia mundial. A abertura comercial e o acirramento da competição internacional impulsionaram transformações estruturais no mercado de trabalho e na organização da produção (que já se delineavam nas décadas anteriores). Em São Bernardo, o setor industrial perdeu parcela de sua importância, ao mesmo tempo em que cresceu o setor de serviços e a economia informal.
 
Rua Marechal Deodoro, 1997. Foto de Celso Amaral
 
A São Bernardo contemporânea, que em 2010 já possuía 746 mil habitantes, conta com os problemas próprios das grandes metrópoles, tais como a violência, a poluição e o déficit habitacional, todos inimagináveis décadas atrás. Por outro lado, alguns dados que mensuram o desenvolvimento humano da cidade apontam outra faceta deste processo: em 1970, a expectativa de vida que um indivíduo tinha em São Bernardo era de 52 anos, hoje ela passa dos 70 anos. A mortalidade infantil caiu mais de 10 vezes no mesmo período e simultaneamente houve um intenso crescimento da escolaridade média. Diante de tais informações é possível concluir que, de maneira geral, as condições materiais de vida melhoraram ao longo do tempo. 

 

Vista da área central da cidade, 1998

 

1.Além disso, a partir da lei municipal 230, de 1953, a comemoração do aniversário da cidade passou a ser oficialmente realizada na data da morte de São Bernardo (20 de agosto), apesar da idade do município ser contada a partir de 1553, ano da fundação da Vila de Santo André da Borda do Campo.

2.Livro do tombo da catedral de São Paulo, 1747-1895, Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, fls. 35, citado em  Santos, W. Antecedentes Históricos do ABC Paulista,1992, p.97. 

3.Livro de Escrituração de Impostos Municipais-1909. Citado em Série Documentos Históricos Nº11 – A indústria. Divisão de Imprensa. PMSBC.
4.Livro de Indústrias e Profissões do Antigo Município de São Bernardo, 1910.
5.Cf. Sumário de Dados de São Bernardo do Campo -2010, p.333.

 

Bibliografia

 

 

Documentos Manuscritos:
 - Livro de Indústrias e Profissões do Antigo Município de São Bernardo, 1910 – (Acervo do Museu Santo André) 

Documentos impressos:
 - Compêndio Estatístico de São Bernardo do Campo, PMSBC - 1998
 - Censo Demográfico de 2010, IBGE.
 - Série Documentos Históricos Nº11 – A indústria. Divisão de Imprensa. PMSBC.
 - Sumário de Dados de São Bernardo do Campo, PMSBC - 2010

Fontes secundárias:
 - AGAZZI, Constatino. Das Regiões da Lombardia e Veneto a São Bernardo do Campo: Acompanhando o Imigrante italiano. USP. 1974. Dissertação de Mestrado em História Econômica.
 - BARBOSA, Newton Ataliba Madsen. São Bernardo – A Verdadeira Terra Mãe dos Paulistas. PMSBC. 1971. 
 - BARBOSA, Newton Ataliba Madsen. Suplemento “História dos Bairros de S. Bernardo do Campo”. In: Folha de São Bernardo, 1978-1979.
 - GIAMBIAGI, Fábio & VILELLA, André. Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004). Editora Campus. 2005.
 - KASSEB, Gisele. O Processo de Industrialização e sua Influência no Desenvolvimento Urbano. Monografia - Universidade Mackenzie-SP.
 - JUNIUS. Notas de Viagem. Governo do Estado de SP. 1978.
 - LIMA, Daniel. Mitos e Fatos da desindustrialização. In: Revista Livre Mercado -junho de 2001.p. 62-65. 
 - MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo. Província de São Paulo. Vol.2. Itatiaia.1980.
 - MARTINS, José de Souza. A escravidão em São Bernardo, na colônia e no império. Pastoral do Negro. Centro Ecumênico de Informação e Documentação.1988.
 - MÉDICI, Ademir. A imigração japonesa em São Bernardo. PMSBC. 1983.
 - MÉDICI, Ademir. São Bernardo,  Seus Bairros, Sua Gente. PMSBC. 1981.
 - PESSOTTI. Attílio. Villa de São Bernardo. PMSBC. 1981.
 - PIMENTEL, Maria Isabel Schulz. O Migrante em São Bernardo do Campo. Experiências e Expectativas de Migrantes Ingressos entre 1950 e 1980 em São Bernardo do Campo e sua Integração à Cidade. USP, 1998. Dissertação de mestrado em História Econômica.
 - RAFFARD, Henrique. Alguns Dias na Paulicéia. Academia Paulista de Letras. 1977.
 - SANTOS, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista (1550-1892). PMSBC. 1991. 
 - TAUNAY, Afonso de E. João Ramalho e Santo André da Borda do Campo. 1953.

 

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