BIBLIOTECA PÚBLICA LUGAR DE CONHECIMENTOS - LAVADEIRAS

“Entretanto, essas mulheres, na maioria das vezes, retiram do próprio cotidiano dolorido não só a subsistência no plano material, como também inventam adequados suportes psicológicos para se fortalecerem e se colocarem como esteio de suas famílias e muitas vezes das comunidades nas quais se acham inseridas” (Conceição Evaristo).

As lavadeiras cantando nas margens do rio são uma imagem romântica do Brasil nos finais do século XIX. Romântica para quem não viveu na pele, nem foi lavadeira. Lavar a roupa, limpar a casa, fazer os serviços domésticos são uma herança das mais resistentes que recebemos do escravagismo. As lavadeiras foram um emblema do Brasil, que aboliu a escravidão comercial, sem abolir o pensamento e a prática escravagistas.

À beira dos rios de um Brasil que fez nascer a República e era desenhado pelo Positivismo, trabalhavam as escravas recém-libertas, mulheres teoricamente livres, que foram jogadas à própria sorte na vida após o fim da escravatura, sem transição ou políticas de adaptação. Dormiram escravas, acordaram libertas, mas a condição não mudou, restaram as águas dos rios como um lócus de trabalho e a “casa grande” como provedora.

Machado de Assis bem descreve nas páginas de Brás Cubas: “As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra: — Cruz, diabo!...

A historiadora Joana Monteleone nos conta que a profissão de lavadeira nos finais do século XIX não foi fenômeno apenas brasileiro: “Lavar roupas era um negócio no século XIX, não apenas no Brasil; uma profissão que concentrava principalmente mulheres pobres, que trabalhavam em conjunto. As lavadeiras faziam parte da paisagem das cidades, causando brigas e confusões ao redor de bicas, chafarizes e rios. Zola escreveu A Taberna (L’Assomoir), em 1876. O romance conta a história de Gervaise, uma lavadeira que ensaia um projeto de emancipação econômica, mas que, pressionada pelas circunstâncias e pelo alcoolismo, vê sua vida arruinar-se. No Rio de Janeiro, os lugares que reuniam tanta gente acabavam por se tornar locais de confusão, sendo muitas vezes alvo de batidas policiais. Brigas por amor, por tentativas de roubo ou mesmo por espaço ao redor das bicas e fontes de água acabavam inúmeras vezes numa profusão de palavrões”.

Se por um lado havia, desde o século XVIII, as escravas de ganho no labor dessa função de lavadeira, no final do século XIX, a profissão de lavadeira foi também requerida pelas imigrantes portuguesas em Santos (litoral paulista) como uma das ocupações mais procuradas. Observa-se, também, uma particular valorização das trabalhadoras lavadeiras imigrantes para além das prendas do lavar, passar e engomar, sendo também apreciado e difundido seu canto ritmado ao movimento laborioso das mãos, a transmitir as tradições da terra natal, como receitas, remédios e memórias; além do trabalho junto ao rio possibilitar o relacionamento com canoeiros, pescadores e carroceiros, que se encantavam com o cantarolar dessas lavadeiras.

Sim, o espaço ocupado pelas lavadeiras era um espaço complexo e cheio de perigos, contradições e violência. A postura resistente das mulheres fortes estava ligada diretamente à necessidade de elas se imporem como trabalhadoras, devido à ausência masculina no provento e condução das famílias e como resistência ao assédio machista. Assim, as lavadeiras foram tidas como mulheres valentes no exercício criativo do cotidiano ao inventar sua sobrevivência.

No Carnaval carioca de 2020, a Escola de Samba Viradouro entrou na Sapucaí com o enredo em homenagem às ganhadeiras da Lagoa do Abaeté, na Bahia. Eram mulheres escravizadas e libertas, que prestavam diversos serviços, entre eles, a de lavadeira. As canções entoadas por essas mulheres passaram de geração a geração, até que algumas de suas descendentes formaram um grupo chamado exatamente as “Ganhadeiras de Abaeté” que inspirou com suas canções ancestrais o desfile da escola de samba. Entre as diversas canções de trabalho usadas pela Viradouro, estava “Alma Lavada”, perfeita para encerrar nosso relato:

"Ô lava a roupa lavadeira do Abaeté/ 
Na sombra da aroeira/ Até quando Deus quiser/ 
Na sombra da aroeira/ Deixa o tempo passar
/ Na sombra do angelim/ Espera a roupa quarar"

 

Links:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-51668882

http://www.encontro2016.bahia.anpuh.org/resources/anais/49/1517263429_ARQUIVO_ArtigoLeda.pdf

https://martaiansen.blogspot.com/2016/05/trabalho-das-lavadeiras.html

https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/38912/24726

 

Referências Bibliográficas:


MONTELEONE, Joana de Moraes. Costureiras, Mucamas, Lavadeiras e Vendedoras: O Trabalho Feminino no Século XIX e o Cuidado com as Roupas (Rio de Janeiro, 1850-1920). Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 27, n. 1,  e48913,    2019  acesso: http://www.scielo.br/scielo.phpscript=sci_arttext&pid=S0104026X2019000100207&lng=en&nrm=iso>access on  17  May  2021.  Epub Feb 21, 2019.  https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n148913

 

 

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