Dos iorubás aos antigos romanos, dos tupis que habitavam o litoral brasileiro à época do nosso “descobrimento” aos cristãos europeus que povoaram o país, a imensa maioria dos homens sempre possuiu algum tipo de crença na continuidade da existência humana após a morte, fazendo dos momentos finais da vida, e do posterior destino do corpo e da alma, temas de preocupações e prescrições seríssimas, culturalmente codificadas e tradicionalmente mantidas na sucessão das gerações, por longos períodos de tempo.

Na Europa, nas antigas cidades gregas e romanas os mortos eram sepultados à beira das estradas, fora da área urbana protegida por muros (1).

Devido ao advento do cristianismo, nos reinos medievais europeus e, posteriormente, em suas colônias no ultramar, como o Brasil, se tornou muito comum o enterro dos fiéis no interior e nos arredores de igrejas e capelas (2) .

É sob essa forma que aparecem as primeiras áreas de sepultamento coletivo registradas no território atualmente ocupado pelo município de São Bernardo do Campo.

No decorrer do século XVIII, os cadáveres da região passaram ser depositados no interior e no entorno da Capela dedica à São Bernardo, fundada em 1717, na fazenda dos monges beneditinos, aproximadamente no local onde hoje sem encontra a confluência das Avenidas Senador Vergueiro e Kennedy (3).

O local continuou recebendo sepultamentos pelo menos até a década de 1840 (4). Ruínas desta capela sobreviveram até a década de 1950.

Por volta desta época, por determinação de Tereza Delta, o local foi escavado, sendo encontrados ossos e urnas de barro cozido , material que foi parcialmente transladado para São Paulo, para realização de pesquisas.

Em 1954, com a compra e terraplanagem da área pelas Industrias Villares, ossos, moedas e cravos de ouro foram desenterrados, assustando os trabalhadores envolvidos na ação (5).

A partir de 1814, após a criação da Freguesia de S. Bernardo e da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Boa Viagem, a maior parte dos sepultamentos da região passaram a ocorrer na área do atual Largo da Matriz, inicialmente no interior e entorno da Capela Nossa Senhora da Boa Viagem, e posteriormente, com a inauguração do edifício definitivo da antiga Igreja Matriz (em 1825), dentro e em volta da mesma. Em 1855, a área que ficava atrás da Igreja e incluía parte do leito das atuais ruas Rio Branco e Padre Lustosa, a qual já recebia os sepultamentos, foi cercada e definitivamente designada para a função de cemitério da Matriz(6).

A partir do final da década de 1820, os discursos higienistas da medicina coetânea, os quais afirmavam que os sepultamentos em Igrejas e centros urbanos traziam grandes riscos para a população que os frequentava regularmente, começaram a ganhar força na sociedade brasileira, suscitando o progressivo aparecimento de leis que proibiam a prática e preconizavam a construção de cemitérios fora das áreas urbanas dos municípios.

Como a Freguesia de São Bernardo foi uma área quase que exclusivamente rural durante a maior parte do século XIX, as novas práticas demoraram a ser adotadas na região. Em 1875, aparecem os primeiros registros de uso do então denominado cemitério da Santa Cruz da Borda do Campo, na área da atual Vila Euclides (7).

Apesar disso, o cemitério da Matriz continuou a ser utilizado . Em 1890, no início do período republicano, a freguesia foi transformada em município, e logo em seguida, em 1892, o cemitério da Vila Euclides foi municipalizado e laicizado.

Atendendo, ao menos em um aspecto, as recomendações das autoridades sanitárias da época, este novo cemitério estava localizado fora do centro do município, tendo continuado nesta situação até meados do século XX, quando começou a ser cercado de ruas e prédios por todos os lados, devido ao vertiginoso crescimento apresentado pela cidade a partir de então.

Com a oficialização da nova necrópole, o cemitério da Matriz deixou de receber sepultamentos e os restos mortais ali encontrados foram transladados para o novo espaço.

Em 1918, foi criado o chamado Cemitério dos Polacos, às margens do Rio Grande. Tendo recebido esta denominação devido à grande concentração de colonos poloneses na área, o espaço foi encoberto pela represa Billings, construída a partir de 1927. Apenas em 1967 a cidade ganhou um novo cemitério, construído no bairro Paulicéia. O intenso ritmo do crescimento populacional nas décadas de 70 e 80, provocou o surgimento de mais dois cemitérios públicos municipais, no Baeta Neves (fim dos anos 70) e na Vila Carminha (em 1987) (8).

Nos últimos duzentos anos as sociedades ocidentais passaram por um processo de lentas e profundas mudanças em seus modos de lidar com a morte, do qual a mencionada retirada dos sepultamentos das igrejas e a tentativa de afastar os cemitérios dos centros urbanos representam apenas uma das facetas.

As mudanças do local da morte e dos velórios - que por milênios aconteceram nas residências familiares e no decorrer do século XX foram lentamente sendo transferidos para os hospitais e velórios municipais – indica uma outra dimensão do mesmo fenômeno.

Em São Bernardo do Campo, cidade cujos primeiros hospitais só surgiram a partir de 1948, durante as primeiras cinco décadas do século XX, quase todos morriam e eram velados em suas residências, em meio às orações de parentes e vizinhos.

Caixões eram levados por pedestres pela Rua Marechal Deodoro, seguidos por uma pequena multidão que, além de parentes e amigos, possivelmente incluía conhecidos distantes e até mesmo desconhecidos. A morte era então um evento público, um acontecimento que envolvia toda comunidade.

 

Imagens:

Acima: Cortejo Fúnebre de Antônio Marson. Rua Marechal Deodoro, próximo à esquina com a rua Dr. Fláquer. 1939.

Abaixo: Antiga Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, com o cemitério anexo ao fundo. Detalhe de fotografia tomada na década de 1880. Pesquisa, texto e acervo: Centro de Memória de SBC.


Notas:
(1)    - Streissguth, Tom. Rome. Death and Burial Practices. In:  Encyclopedia of society and culture in the ancient world / Peter Bogucki, editor. USA, 2008. V1. p.320 -321.
– Closterman, Wendy. Greece. Death and Burial Practices. In:  Encyclopedia of society and culture in the ancient world / Peter Bogucki, editor. USA, 2008. V1. p.319.
(2)    – Alencastro, Luiz Felipe de (Org.). Historia da vida privada no Brasil. Vol. 02. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.p.124-129.
(3)    -  Santos, Wanderlei dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista – 1550-1892. São Bernardo do Campo, PMSBC, 1992. p. 91.
(4)    – Registros Paroquiais de São Bernardo. Cúria Diocesana de Santo André. Livro de óbitos da Freguesia de S. Bernardo (1833- 1875). p.30.
(5)     - Cf. Pioneiros de SBC. Relato de depoimento da Sra. Ester Negri Rathsam Trentini.  Centro de Memória de S.B.C. Caixa  87-C. Envelope 13.
 - Cf. Newton Ataliba Madsen Barbosa e Marco A. Piquini. Jornal Folha de São Bernardo. 24/02/1979.  Suplemento Especial. p.6
(6)    -  Santos, Wanderlei dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista – 1550-1892. São Bernardo do Campo, PMSBC, 1992. p. 155.
(7)    – Ibidem.p.155.
(8)    – Cf. Jornal  Domingo em São Bernardo.  1 de março de 1987.  
-  Cf. Jornal Diário do Grande ABC. 9 de julho de 1987.

 

 

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