BIBLIOTECA PÚBLICA - LUGAR DE CONHECIMENTOS - MULHERES NA CIÊNCIA E EM TODOS OS LUGARES - PARTE 7 - FARINHADA: ENTRE LUGARES E LEITURAS DO VASTO MUNDO“(...)leve, forte, pode tudo, tem asas. Mais, um pouco mais... Lá em cima, a moça, o beijo. Não percebe que aos poucos a praça silencia, tensa, admirada. Agora, mais um pouco e sua mão toca a cruz, agarra-se. Preá respira todo o ar do mundo e olha: lá embaixo o carro preto, a mala, a moça acenando. Só quando o carro que leva a moça desaparece ao longe, numa nuvem de poeira, é que o olhar de Preá, liberto, encontra o horizonte. Lá de cima passeia, vaga, vê. E Preá descobre que vasto é o mundo.(...)” (Maria Valéria Rezende)

“(...)Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número possível de livros.” (Jorge Luis Borges)

O melhor livro que o autor deste texto leu até hoje foi um livro em que ele começou pela última página. Ao terminar de ler, chorando de comoção, o desfecho do protagonista, a ânsia de viver toda a sua trajetória para saber como foi possível chegar a esse fim, fez com que a leitura fosse o percorrer atentamente uma estrada, sem perder um único detalhe da paisagem.

Por isso, optamos em começar pelo final. Os trechos acima correspondem, respectivamente, ao final do primeiro conto de Maria Valéria Rezende, em seu primeiro romance publicado; e ao final do consagrado conto, A Biblioteca de Babel, do argentino Jorge Luis Borges.

Nada melhor para iniciarmos um percurso do que a conclusão de um diálogo imaginário entre Maria Valéria e Borges no qual, ao final dessa troca de ideias, ambos os mestres concluem que o mundo é vasto, infinito...

Eu dei quatro voltas ao mundo sem pagar uma passagem” gosta de nos contar a escritora/contadora Maria Valéria Rezende. Segundo a autora, nascida em Santos, sua casa na infância, durante as décadas de 1940 e 1950, era o meio do mundo para ela, com vizinhos sírios, judeus poloneses, alagoanos, médicos de Goa, casas de família de ingleses casados com alemães e por aí vai; isso tudo num quarteirão da cidade portuária paulista.

Com pouco acesso à televisão, a leitura fez parte do cotidiano em sua juventude. E a leitura não somente em livros, mas também, nas conversas, em várias línguas, com pessoas do mundo todo. Nesse quarteirão, a "geógrafa" Maria Valéria Rezende teve seus primeiros contatos com o mundo como lugar infinito.

(...) “Os sebos perto do cais eram uma coisa sensacional! Eu me lembro a primeira vez que eu achei um livro chinês, de trás pra frente, a capa era do lado de cá (ri), que eu não entendia nada, nem o número das páginas. E eu comprei aquele livro e voltei pra casa, eu devia ter, sei lá, onze, doze anos. Voltei pra casa como se estivesse carregando uma relíquia, imaginando “veio do outro lado do mundo”(...)

Do quarteirão para o porto, o caminho era curto e os sebos, não as livrarias, eram sua referência afetiva na memória daquela época. Os livros lidos e deixados por marinheiros e passageiros do vasto mundo eram histórias de vida. Em cada porto, um livro….

Dessa relação com os infinitos lugares da leitura e das conversas em várias línguas em seu cotidiano, veio o início de uma trajetória que ainda hoje rende algum dinheiro à nossa intérprete. Maria Valéria Rezende tornou-se tradutora:

Bom, e tem língua que eu não sei falar, mas eu entendo. Por exemplo, eu passei quatro meses no Timor, eu traduzia tétum, a língua franca do Timor, porque eu descobri que só tinha nomes e verbos. Aí a língua é assim: por exemplo, tudo o que é planta começa com “ai”, então você ouve “ai” e já sabe que é uma planta. E não tinha palavras abstratas. Pra dizer uma palavra abstrata, eles faziam uma poesia, como o árabe também. Era bonito, muito bonito. Então, “aifarinha”, o que é? Mandioca. Porque os portugueses, nas caravelas portuguesas, levaram a mandioca pra lá pra fazer farinha. Aí eu comecei a ouvir palavras em português no meio, todas as palavras abstratas eles pegaram do português. Quando eu saquei o negócio, pronto. Eu fiquei meses lá e fiz uma campanha, foi logo que saíram os indonésios. A gente tava ajudando os movimentos populares, que eram todos clandestinos, ligados à guerrilha, e era uma confusão danada. A escola era em bahasa indonésia, que é uma língua engraçadíssima, porque eles não têm plural, então o plural é repetir a palavra. É muito gozado (ri), é outra lógica de língua. Porque isso que é o difícil, o difícil quando você lida com essas outras línguas que não tiveram a marca latina, grega e latina

Foi na década de 1960 que a missionária foi dar suas voltas ao mundo. Como missionária e educadora popular, a contadora de histórias esteve da Europa para o Haiti, do Timor para a China, da China para o Canadá e por aí foi, até chegar em João Pessoa, na Paraíba e, de lá, para criar a cidade de Farinhada, cidade fictícia, mas não irreal, onde aconteceu seu primeiro romance, Vasto Mundo.

“(...) Eu queria fazer um romance em que o protagonista não fosse o indivíduo, mas o coletivo (...)”

Assim nos conta Maria Valéria Rezende sobre a estrutura do romance, no qual cada conto traz uma perspectiva e um ponto de vista sobre a cidade. Como quando fala do padre alemão:

(...) Padre Franz é patrimônio perpétuo de Farinhada. Já deixou em testamento que quando morto quer ser enterrado no cemitério velho, no cocuruto da Serra do Pilão. Aliás, é só isso que consta em seu testamento, pois a quem poderiam interessar os velhos livros em alemão?

Há vinte e cinco anos vive na vila. No vigor de seus quarenta anos, em meio a uma brilhante carreira de teólogo, deixou uma abastada e tranquila paróquia às margens do Danúbio e sua cátedra numa universidade alemã, entusiasmado com a recém-nascida Igreja da América Latina e sua opção preferencial pelos pobres. (...)

E aqui, no começo do segundo conto do livro, duas coisas se juntam para desvendar o infinito contraditório proposto por Borges. Maria Valéria Rezende nos traz como a importância do coletivo é fundamental para a caminhada da escritora. É fundamental também para que encontremos o nosso lugar de leituras, bem brasileiro, inclusive.

Em participação de mesa para o Sistema Estadual de Bibliotecas (SISEB), a "bibliotecária" Maria Valéria Rezende usa o coletivo para questionar um mito: quem disse que o brasileiro não lê? Segundo a "mediadora de leitura", se partirmos da imagem tradicional do leitor, como o intelectual, por exemplo, que aparece sentado numa poltrona, sozinho, numa sala, um ambiente protegido, controlado, silencioso, mas, com uma janela com vistas para o longe, não é aí que encontraremos o leitor brasileiro. Nosso leitor está nas praças, nas ruas da cidade, nos campos, e o cordel é uma manifestação cultural desse leitor.

Acolhedora, ela não parece excluir esses dois tipos de leitores, mas o tipo nacional ela o identifica como o que lê para além dos limites dos livros, lê imagens, lê o tempo, sente o gosto da terra para saber o que se planta ali naquele terreno, lê mais do que palavras. Diz também que os livros nasceram para se tornar redondos, de tanto se manuseá-los, desgastando seus cantos de tanto folheá-los!

Essa é, apenas, uma cartografia possível de Vasto Mundo, escrito por Maria Valéria Rezende. E por causa da geografia de sua escrita, é que a Rede de Bibliotecas Públicas Municipais da Secretaria de Cultura e Juventude de São Bernardo do Campo a escolheu para ser lida e para inaugurar nosso Programa Lugar de Leituras no mês de março, que é o mês das mulheres. Porque lugar de mulher é no vasto mundo e Maria Valéria Rezende andou o mundo e criou o mundo de Farinhada, que faz divisa com Macondo e ambos estão na infinita e diversa biblioteca de Babel.

E as bibliotecas de São Bernardo do Campo estão além dos muros, paredes, estantes... acesse esse e outros livros em nosso acervo https://bibliotecapublica.saobernardo.sp.gov.br

Referências:
Começamos pelo final e terminamos pelo começo. O melhor livro que o autor deste texto leu foi Quincas Borba, de Machado de Assis, e o final de Rubião e Quincas Borba em uma ladeira de Barbacena….

“(...). Preá, ele, sempre na pracinha ou na rua do meio, ao alcance de um grito.
Quando não tem serviço, encosta-se na parede... Espera. Jamais sai da vila. Sua casinha na ponta da rua é o limite do mundo. No mundo rural de Farinhada, Preá é urbano, da parca urbanidade da vila. (...).”
(Vasto Mundo).

Entrevista para o Itaú Cultural:
https://youtu.be/z0YpPWa6N6Y

Participação em mesa no 11º Seminário Internacional Biblioteca Viva: Conhecimento, Leitura e Literatura - Novas Trilhas:
https://youtu.be/C8Zc0RIQSjA

Entrevista de Maria Valéria Rezende ao programa Casa das Palavras, da TV Câmara dos Deputados:
https://youtu.be/qjdeFoKRUqk

Entrevista recente, de agosto de 2020, falando de sua trajetória como tradutora:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-79682020000100328

Uma resenha sobre Vasto Mundo:
https://obenedito.com.br/e-o-mundo-e-vasto/

O conto Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges:
http://site.ufvjm.edu.br/cafeliterario/a-biblioteca-de-babel-jorge-luis-borges/

 

 

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