A distopia está associada diretamente a clássicos literários do século XX. Trilhando um caminho que começa com o romance Nós (1924), do russo Evgueny Zamiatin e o relato de um Estado interveniente na vida cotidiana e nas decisões de todos os indivíduos. Passa por três pilares:  em 1932, Admirável Mundo Novo, de Aldoux Huxley; em 1948, 1984, de George Orwell; e em 1953,  Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Controle social, vigilância, guerra cultural, domínio político pelo discurso, pela estética, pela produção de narrativas.

Os romances distópicos parecem contar com estilo, fabulação sobre o nosso cotidiano forjado pelo colonialismo, por duas guerras mundiais, por avanços tecnológicos e científicos, que nem sempre representam avanços em nossas vidas e que têm grande reflexo no que vivenciamos e sentimos e sobre as coisas que nos impulsionam.

Na Literatura, é farta e ampla a tradição distópica, mas, onde ela estaria na poética das canções? Evidentemente que existem músicas distópicas. Os romances de Huxley, Orwell e Bradbury apresentam a música como um instrumento de controle e alienação: os hinos que se repetem, a repetição que hipnotiza, os jargões que se reproduzem como palavras de ordem.

Saindo da ficção e mergulhando na Música - que preenche o nosso dia a dia, que se mistura às outras Artes e formas de expressão como informação e inspiração para interpretação do mundo ou mesmo como puro entretenimento -, é muito fácil associá-la à produção de utopias, mas, as canções também descrevem as distopias.

O período do governo militar no Brasil (1964-1985) foi um momento histórico em que a Música ocupou um espaço muito importante. Tanto como um veículo de crítica e denúncia ao regime, assim como, também,  um espaço de fruição e construção de utopias. Mas há momentos distópicos na Música Popular Brasileira em meio ao governo civil empresarial militar.

Em 1977, o cantor e compositor Raul Seixas escreveu O Dia em que a Terra Parou, baseada no filme homônimo dirigido por Robert Wise na década de 1950. No filme, um extraterrestre veio à Terra trazer uma mensagem de paz e, para chamar a atenção, fez com que tudo parasse. Inspirado no filme, Raul Seixas e o parceiro Carlos Roberto escreveram:

“Essa noite, eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei
No dia em que a Terra parou.”

A letra segue contando a história de um dia em que todas as pessoas param e não vão fazer o que fazem todo dia. O professor e o aluno, o padre e o fiel, o comandante e o soldado, o médico e o paciente. Todos param e, consequentemente, a educação paralisa, a religião se congela, a guerra é interrompida, a doença se dilui.

É de se pensar se Raul e o parceiro sugerem um momento distópico, para abrir brecha para uma nova utopia no meio do obscurantismo do  governo militar. A paralisação sugerida pode também nos submeter ao contexto em que vivemos agora, no qual a pandemia do novo coronavírus submeteu parte da sociedade a uma paralisação e mudanças na rotina, enquanto outra parte foi convocada a continuar distopicamente a sua rotina de trabalho e atividades, em meio a uma ameaça constante de morte.  À luz da pandemia, uma dura experiência coletiva, a canção de Raul Seixas tem um quê de visionária:

“Essa noite eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei.”

Em 1972, dois jovens, um carioca e outro mineiro, lançaram um álbum que entraria para a história da Música Popular Brasileira. Estamos falando do Clube da Esquina e de dois cantores e compositores que se tornariam, ao longo do tempo, figuras importantes da nossa Música. Milton Nascimento e Lô Borges não faziam ideia do quanto aquelas canções povoariam a vida, o sonho e as barras pesadas de tanta gente. Clube da Esquina é um enclave de canções, ideias, sensações, utopias e distopias escritas e descritas.

Dentre as canções do álbum, uma retrata de forma lapidar o momento em que foi escrita, também na ditadura, que se aproximava muito das distopias de Huxley, Orwell e Bradbury, trata-se de Cais,  uma parceria entre Milton Nascimento e o letrista Ronaldo Bastos, uma das músicas mais tristes e distópicas do cancioneiro nacional.

“Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de encontrar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador.”

A ideia de paralisia, de espera sofrida, é suavizada por uma invenção, um sonho, uma mudança que ainda não é. Diferente da música de Raul Seixas, Cais expressa de forma lírica o desejo de mudar, ao mesmo tempo que conota a impossibilidade de mudança. Talvez, uma das canções que conseguem reproduzir de forma não panfletária a angústia de viver numa sociedade sem liberdade, sob a judice da violência e da imposição. Em 1972, os jovens compositores não sabiam que tal agonia duraria mais de uma década para acabar.

“Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar.”

Em 2020, no meio da pandemia do novo coronavírus, Milton Nascimento se juntou ao jovem e talentoso pianista recifense Amaro Freitas (que fez um lindo arranjo) e ao cantor paulistano Criolo para gravar uma versão maravilhosa de Cais. Em meio a uma nova distopia que fez ressoar e tornar mais próxima as distopias passadas, segue esse Cais de esperas e partidas.

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