No dia 30 de novembro, o município de São Bernardo do Campo comemora a passagem dos 79 anos de sua Emancipação. A efeméride diz respeito ao momento da separação entre os atuais municípios de São Bernardo do Campo e Santo André, cujos territórios estiveram legalmente unidos, em uma única entidade administrativa, desde a criação da Freguesia de São Bernardo, em 1812. Em 1890, a antiga freguesia, até então uma subdivisão administrativa da cidade de São Paulo, foi transformada em um município, com o nome de São Bernardo e com sede na região central do atual município de São Bernardo do Campo. A partir de meados da década de 1900, o centro demográfico, urbano e econômico do município se deslocou para a área da estação ferroviária da atual cidade de Santo André, a qual foi transformada em distrito em 1910. No decorrer das décadas seguintes, a disparidade política, social e econômica entre o novo distrito e a velha sede aumentou imensamente, motivando, nos anos 1930, o pleito andreense pela mudança da sede do município. Então, conforme decisão do governo estadual, expressa no decreto 9775/1938. a partir de 1º de janeiro de 1939, o antigo município de São Bernardo passou a se chamar Santo André, tendo sua sede sido transferida para a região do antigo bairro da estação e o território do atual município São Bernardo do Campo transformado em distrito. Descontentes com o rebaixamento, em 1943, um grupo de personalidades locais começou a se articular para tentar a emancipação do então distrito são-bernardense. Entre eles estavam Armando Setti, Pery Ronchetti, Bortolo Basso, Nerino Colli, Francisco Miele, Gabriel Nicolau, João Corazza, entre outros. Sem prestígio junto ao governo da ocasião, este grupo buscou o apoio do banqueiro Wallace Cockrane Simonsen, proprietário de uma chácara na cidade. Empresário famoso e um dos homens mais ricos do país, Simonsen tinha os contatos políticos de alcance nacional que faltavam ao grupo. Em junho de 1943, sob a liderança de Simonsen, é fundada a Sociedade dos Amigos de São Bernardo, criada com o propósito principal de coordenar a luta pela emancipação, atuando junto às autoridades do governo paulista. Graças à persistência desse grupo e – principalmente – à influência política de Simonsen, o objetivo dos são-bernardenses foi atingido, através do decreto estadual n.º 14.334, em 30 de novembro de 1944, No dia 1° de janeiro de 1945, o novo município foi instalado, agora com o denominativo "do Campo" agregado ao nome "São Bernardo". Wallace Simonsen foi nomeado prefeito, tomando posse nesse mesmo dia e governando a cidade até 1947.

Os eventos históricos deixam registros ricos e diversos na memória daqueles que deles participam. É próprio dos programas de história oral coletar toda a riqueza, a diversidade, e a singularidade destas memórias, Neste sentido, o depoimento de Bortolo Basso, um dos protagonistas daquele momento histórico, registrado pela Sala São Bernardo - núcleo original do atual Centro de Memória de SBC - no dia 17 de dezembro de 1976 (1), traz uma narrativa vivaz e dramática – ainda que incompleta e imprecisa - dos acontecimentos relativos à emancipação do município. Abaixo transcrevemos alguns de seus trechos:

“Foi mais ou menos em 1942 que eu, por circunstâncias que não adianta eu querer contar aqui para vocês, eu perdi tudo. Então eu comprei um bar, aqui na rua Dr. Fláquer com a Marechal Deodoro (2).

O nome era “Bar e Café Expresso”. Depois de uns 15 dias que eu estava com o bar, uma noite entrou um senhor na sala de jantar. Esse senhor me mandou chamar. Meu garçom disse:
- Sr. Bortolo, tem um senhor que quer falar com o senhor.

Eu fui para lá e me pus à disposição:
- Boa noite, estou às suas ordens.
- Olha meu amigo, eu queria fazer uma refeiçãozinha aqui, rápida, o que o senhor tem para me dar ?
- Olha eu não tenho mais nada porque em São Bernardo não tem esse costume de à noite jantar (...), de maneira que não tem quase nada. A cozinha não funciona de noite, restaurante não funciona. Eu tenho presunto, salame, queijo...
- Não, mas eu queria qualquer coisa quente.
- Bem, se o senhor aceitar, eu posso arrumar para o senhor um filezinho mignon.
- Então me arruma um filé mignon com petit pois.

Fui para cozinha e eu mesmo preparei para ele o filé mignon com petit pois, servi um pãozinho, um pouco de manteiga que eu tinha no momento e ele fez a refeição. Depois me mandou chamar, pagou, se despediu e foi embora. Quanto foi daí uns dois dias, mais ou menos, esse senhor tornou a voltar. E então aconteceu a mesma coisa, eu não tinha mais nada e aí ele pediu uma omeletezinha com um pouco de presunto e tal. Servi e etc. Aí eu me permiti a perguntar se ele voltava outras vezes mais, se ele viria todas as noites, para mim poder me abastecer de qualquer coisa mais, para poder servi-lo melhor.
- Bom, olha eu venho toda noite, Eu moro em São Bernardo - então ele se apresentou - sou Wallace Simonsen. Tenho um chácara aqui na Nova Petrópolis, eu venho quase toda noite para cá. Gosto de São Bernardo.

Então, quase que todas as noites ele vinha neste horário (...) e ali eu servia a ele essa pequena ceiazinha - vamos dizer - ou janta. E começamos a conversar. Então ele começou a se interessar pela minha vida, a me perguntar o que eu fazia, porque eu fechei a fábrica de móveis (...). Eu não conhecia esse inglês. Por sinal todo mundo conhecia Wallace Simonsen como “O inglês bravo”. Ele andava muito de cavalo. Ficamos batendo papo (...). Depois (de falar ) da minha vida, ele entrou na vida da cidade, na vida de São Bernardo do Campo:
- Escuta aqui, por que é que São Bernardo não vai para a frente, porque que isto aqui está completamente parado, abandonadp, ninguém faz nada, não tem nada, não vê nada, não tem escola (...)
- Muito bem (...), em São Bernardo tem um grupo escolar e tem a escola das irmãs - foi até o Sr. Ítalo Setti que doou terreno (...)
- Mas só tem isso só? Isso é muito pouco, Nós precisamos fazer qualquer coisa por S. Bernado. Mas que diabo, vocês também não tem quem se interesse?
- Quem se interessa tem. Eu por exemplo me interesso, mas eu não possibilidade. Eu não tenho conhecimento, eu não conheço político, não conheço ninguém. Santa André é quem manobra tudo.

Lá tem os Fláquer, os Saladinos, essa gente é que toma conta disto aqui. Levaram tudo lá para Santo André, levaram coletoria, tudo foi para lá, de modo que nós aqui não temos nada(...). Eles já disseram - lá em Santo André - que eles querem vir em São Bernardo do Campo caçar veado lá no lago da Matriz, então se aparecer um homem como o senhor que queria se interessar talvez esses veados vão sumir.

Então, o Sr. Wallace começou a se interessar:
- Então vamos trabalhar para São Bernardo. Olha aqui, se você acha que São Bernardo pode ir em frente, conte comigo porque eu estou disposto a fazer de São Bernardo tudo que vocês quiserem.
Então, essas conversas que eu tinha quase diariamente com o Sr. Wallace, eu às transmitia aos meus amigos. E um dos grandes amigos com quem eu mais conversava era o Dr. Plínio Ghiraldelo. Ele tinha um gabinete dentário em cima do bar. Então todo dia, 4 ou 5 vezes por dia, ele descia no bar para tomar cafezinho. Então eu chamava o Plínio e dizia:
- Plínio, você sabe que tem um cidadão aí, que toda a noite ele pergunta e fala de São Bernardo, (...) e diz que ele faz, que ele vai fazer, está disposto. É só nós agora aproveitarmos a oportunidade (...) o que você acha Plínio ? Mesmo que fosse preciso emancipar São Bernardo, ele vai trabalha para isso.

E nessas conversas todas eu fui entusiasmando o Dr. Plínio, o Dr. Gabriel. O Dr. Gabriel contou para o Corazza. O Corazza contou para o Miele ...o Nerino Coli ... e foi andando por ai conversa. Então depois de algum tempo e de muita conversa (...) o Sr. João de Azevedo Marques chegou para essa turma toda e disse a eles:
- (...) Se vocês querem criar um município aqui, emancipar São Bernardo, (...) vocês tem que começar já.

Então quando foi mais ou menos no dia 3 de maio de 1943, (...) reuni no café expresso o Dr. João Corazza, Nerino Coli, o Dr. Gabriel (Nicolau), o Plínio Ghirardello, Pery Ronchetti , Chico Miele e mais outros (...). Depois de mais ou menos um mês e meio, (...) eu tinha vendido o café expresso (...) e eu fui montar uma serraria lá em Córrego Preto,(...). Depois da terceira reunião que eles fizeram, eles me mandaram recado (...) para que viesse imediatamente para São Bernardo, que eles precisavam muito falar comigo. Quando cheguei, me procuraram dizendo:
- Escuta Bortolo, nós precisamos muito falar com você,
- O que é ? Eu estou aqui agora.
- Nos reunimos aqui por diversas vezes e resolvemos trabalhar para emancipação de São Bernardo do Campo, e como você nos contava que esse Sr. Wallace Simonsen estava disposto a tudo, até, se fosse necessário, ser o próprio prefeito de São Bernardo do Campo, nós vamos aproveitar a oportunidade. Você poderia marcar um entrevista com esse senhor para que ele nos atendesse para tratar do caso?
- Olha, não tem nada de marcar entrevista, o Wallace Simonsen, todas as noites que ele veio meu bar, ele fez tanta amizade comigo, ele ser tornou tão amigo meu, que ele me põe à disposição a casa dele qualquer momento que eu queira(...). Não vou marcar coisa nenhuma, nós vamos para a casa dele(...). Vou telefonar para seu Wallace.

Peguei telefone no próprio café expresso, telefonei para o Wallace, eram mais ou menos nove e meia da manhã, ele estava na sala de café e o empregado dele, o mordomo, me perguntou:
- Quem quer falar ?
- Um grande amigo dele, Bortolo Basso, Ele se comunicou, voltou, e o senhor Wallace veio no aparelho:
- O que é que o senhor quer?
- Senhor Wallace, eu precisava marcar um encontro para uma conversa muita séria. Então imediatamente ele me disse:
- Então você venha para cá agora mesmo que nós vamos tomar café juntos. Eu fui para a casa dele junto com Dr. Gabriel. Então como nós não tinhamos automóveis, o Dario Setti, que tinha uma baratinha (3), se prontificou a nos levar até lá, que fica mais ou menos a 1 km daqui do centro. Fomos até a casa do Sr. Wallace. Ele mandou entrar, tomamos café com ele. Terminamos o de tomar café, fomos para a sala de visitas e lá então ele se pôs às ordens:
- Muito bem Bortolo, o que é que você manda, o que é você quer?
- Bem, seu Wallace, o que eu quero é o seguinte: .depois de tanta conversa, depois de quase 6 ou 7 meses de bate papo, sempre sobre o mesmo assunto (...) eu fiz a minha propaganda aqui com os meus amigos. Resolveram fazer a emancipação, tratar da emancipação de São Bernardo do Campo.
Então o Dr. Gabriel expôs tudo que nós queríamos. Quando o senhor Wallace ouviu toda essa conversa, do município, da emancipação. pensou um pouquinho e disse:
- Olha, vocês vão me desculpar, mas eu não vou topar. Não, porque essa parada é muita dura, muito difícil. Precisa ir nas altas esferas políticas. Isso vai dar um trabalho medonho. Eu não estou disposto não.

E terminou a conversa. Então, depois que ele disse isso, eu fiquei todo desapontado. Eu não sabia o que falar (...) e para onde me virar. Como eu sempre fui muito franco demais (...) disse:
- Senhor Wallace, o senhor vai perdoar. Eu posso dizer um coisa para o senhor? Uma coisa que eu sinto?
- Pode
- O Senhor não vai zangar?
- Não.
- Senhor Wallace, o Senhor está me desmontando. Como é que eu vou aparecer em São Bernardo? De que maneira eu vou voltar para a minha casa ? Eu vou sumir de São Bernardo, eu vou desaparecer, aqui eu não posso mais ficar.
- Mas por que?
- Lógico, Senhor Wallace (...). Depois de o senhor ter me falado tanta coisa que faria por São Bernardo, o Sr. vem com essa conversa? Dizer que o senhor não topa?
Ele parou um pouquinho, pensou, virou para mim e disse:
- Escuta aqui Bortolo. Eu falei tudo isso para você ?
- Falou.
- Olha aqui Bortolo, se eu falei eu topo. Você pode ir amanhã no meu escritório na Rua Boa Vista (4) às duas horas, que nós vamos tratar do assunto.

E aí começou a emancipação, começou o trabalho. Tinha um jornal em Santo André. Quem dirigia esse jornal era um tal de Tabarelli (5), e o prefeito de Santo André (6) escreveu um artigo no jornal dizendo que era melhor o Sr. Wallace Simonsen ficar no sítio dele criando cavalos do que querer fazer emancipação no município de São Bernardo. Era mais fácil criar cavalos do que criar um município. Wallace, naquela altura, ele estava meio desanimado. Quando Wallace então se queimou com essa publicação do jornal, ele reativou os negócios outra vez, de tal forma que, pouquíssimo tempo mais, nós tivemos aqui a emancipação de São Bernardo. A população estava toda eufórica. Eles tinham um fé tamanha, que Deus deu para nós o município. A fé foi tanta, mais tanta, que nós obtivemos aqui a emancipação. O povo ficou mais do que alegre, mais do que contente.

As mudanças vieram muito devagar, depois da emancipação. Naquela tempo o governador de São Paulo era Fernando Costa. Ele nomeou Wallace Simonsen como prefeito. Ele tem um estátua na Praça Lauro Gomes. Essa estátua é muito merecida porque o maior homem que nós tivemos para São Bernardo do Campo infalivelmente foi ele. Porque ele ali lutou com todas as dificuldades imagináveis (...) .Não tinha prefeitura, não tinha máquinas, não tinha nada para ele poder fazer a funcionar a prefeitura. Ele teve que trazer tudo, muita coisa ele trouxe dele mesmo, deu dele, do escritório dele, máquinas e coisas. E depois, ainda por cúmulo, veio a guerra. Em plena guerra começou a faltar óleo, faltar açúcar. Tudo era racionado e ele tinha todas essas dificuldades. Ele foi um verdadeiro herói porque depois disso, depois que começou a melhorar, ele pôs a prefeitura em dia, meia dúzia de funcionários e não mais. “

 


Bortolo Basso. Década de 1970.

 

 

Notas:

(1) - Cf. Basso, Bortolo. Depoimento. 17/12/1976. Banco de História Oral. Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

(2) - Aqui Bortolo se refere ao prédio que abriga os atuais números 1255 e 1259 da Rua Marechal Deodoro, na esquina com a R. Dr. Fláquer.

(3) - Automóvel modelo Ford-A Roadcaster

(4) - Rua Boa Vista, na capital paulista.

(5) - Basso se refere ao Jornal “O São Bernardo” , dirigido por José Tabarelli. Em 1944, esse periódico passou a ser denominado Borda do Campo e a ser dirigido por Nicola Tortorelli.

(6) - O Prefeito de Santo André, na época, era o mineiro José de Carvalho Sobrinho.

 

 

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