A memória social de um grupo, comunidade ou sociedade é constituída pelo conjunto de representações e conhecimentos compartilhado por parcelas significativas dos indivíduos que a compõem e que diz respeito a seu passado.  Ela existe, em algum grau, onde existe vida coletiva, até mesmo em uma pequena família, ou em um restrito grupo de amigos, encarnada não apenas nas narrativas que lhes são próprias, mas também em costumes, rituais, e até mesmo em nomes, apelidos e pequenas anedotas que apenas seus membros usam.  No passado mais remoto, a memória era transmitida apenas oralmente, mas com o aparecimento das primeiras civilizações passou a utilizar a escrita e até mesmo a paisagem física das cidades, com seus monumentos e edifícios públicos, como suportes privilegiados.  O advento das sociedades contemporâneas, com os grandes movimentos migratórios ligados ao seu desenvolvimento, com seu crescimento urbano desordenado, suas indústrias sofisticadas, e sua sociabilidade atomizada e efêmera, provocou mudanças radicais nos tradicionais meios pelos quais a memória social existia e se propagava.  A transmissão oral diminui com o afrouxamento da vida comunitária e intensificação do individualismo; a paisagem física das cidades foi rapidamente transformada para atender às demandas do progresso tecnológico e às mudanças econômicas e culturais; através da universalização do ensino público, a ciência histórica, simplificada e adaptada em livros didáticos, normalmente referentes aos estados nacionais, tornou-se um dos suportes fundamentais da memória social.  Sobretudo durante a segunda metade do século XX, essas mudanças aceleradas levaram a processos de perda de referências, de identidades coletivas e de conexões com o passado, os quais, por sua vez, provocaram o surgimento de movimentos sociais, fenômenos culturais e inúmeras ações estatais ligadas ao resgate, à preservação e à divulgação da memória.
 
     Descrever a trajetória da memória social no território que hoje é ocupado pelo município de São Bernardo do Campo nos século anteriores à urbanização não é tarefa fácil. Pouco pode ser recuperado.  Ainda sim, alguns registros sobreviveram na toponímia da região.  O termo “jurubatuba”, por exemplo - que significa “Rio Grande” e denomina hoje uma das principais ruas da cidade - remete à memória dos índios tupis que habitavam a região no século XVI.   A efêmera existência da Vila de Santo André da Borda do Campo e de seu controverso líder João Ramalho, podem ter deixado marcas na memória regional, como sugerem alguns documentos produzidos muito tempo depois de seu desaparecimento (1560), e que ainda lhe fazem referência. Um exemplo é um manuscrito de 1633, que versa sobre a demarcação de terras doadas por Brás Cubas aos carmelitas de Santos, em que moradores da região apontam a localização dos “Pinhais que estão na Borda do Campo, nesta Vila Velha de Santo André” e do caminho “que os antigos moradores da Vila de Santo André usaram para ir à Piratininga” (1).  
 
     Posteriormente, já entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, o tema da Vila de João Ramalho volta a aparecer publicamente através dos primeiros livros sobre a História do Estado de São Paulo, como os escritos por Pedro Taques (1772) e pelo Frei Gaspar da Madre de Deus (1797).  Desta época até o início do século XX, o assunto circula principalmente entre eruditos, porém é digno de nota o fato de que um importante livro didático destinado ao ensino primário, publicado em 1864 (2), também o mencionasse.  Finalmente, a partir da virada para o século XX, por iniciativa de políticos da região, o tema da vila quinhentista passa a ser lentamente recolocado na memória local, através da denominação de logradouros importantes, sendo o Distrito de Santo André (1911), o principal deles.  Finalmente, através, da criação do brasão do município, em 1926, o passado quinhentista é assumido oficialmente como momento fundador da história regional, passando, no decorrer do século, a ser comemorado em feriados municipais e ensinado nas escolas. 
 
     Na região de São Bernardo, a partir dos anos 1970, em consonância com ações semelhantes em outros locais e em resposta ao crescimento urbano acelerado, à volumosa imigração e à modernização da cidade em geral, surgiram novas iniciativas que buscavam o   registro e a difusão da memória social.  Geralmente referida ao período que vai da imigração européia (1877) até a chegada das multinacionais (déc. 1950), esta novo memorialismo tratava de conteúdos que resultavam de processos de vivência coletiva e transmissão oral que remontavam há poucas gerações, e que aconteceram, na sua maior parte, em uma São Bernardo ainda pequena e predominantemente rural. Entre estas novidades podemos incluir: as crônicas do memorialista Atílio Pessotti (2), publicadas na imprensa local (1970 – 1979); o surgimento de uma sala destinada à memória municipal no Museu Histórico e pedagógico Raposo Tavares (1971); a instalação da Sala São Bernardo, na Biblioteca Municipal Monteiro Lobato (1976); e a atuação do jornalista Ademir Médici em vários órgãos da imprensa regional (1979 -2022).
 
     Nos anos 1980 as iniciativas se multiplicam, ampliam e se diversificam.  Surgem os primeiros tombamentos de imóveis associados à história municipal, onde se preservam espaços associados a diversos temas, como a Capela Nossa Senhora da Boa Viagem (construída originalmente em 1814), a Chácara Silvestre (ligada à emancipação do município), a Câmara de Cultura Antonino Assumpção, e o pavilhão dos Estúdios Vera Cruz. A comparação com as décadas de 1940 e 1950, nos quais foram demolidos prédios centenários como o Casarão do Bonilha e antiga Igreja Matriz, torna nítido o contraste entre as velhas e as novas mentalidades relacionadas à preservação da memória por parte do poder público. 
 
     Na mesma época, a Sala São Bernardo, embrião do atual Centro de Memória, deixou a biblioteca e se instalou na Rua João Pessoa, sob a denominação Serviço de Documentação da Histórica Local, com acervos e ações ampliadas e aprofundadas.  Transferido para Alameda Glória desde 2007, o órgão passou a ser conhecido como Centro de Memória de São Bernardo do Campo em 2017, e hoje é a principal instituição municipal dedicada à preservação, coleta, organização e disponibilização de acervos documentais relacionados à história e à memória da cidade.  Desenvolvendo também atividades de pesquisa e difusão na mesma área, o Centro de Memória de São Bernardo do Campo trabalha continuamente para o enriquecimento e o aprofundamento da memória social do município, visando não apenas a atual, mas também as futuras gerações de munícipes. 
 
     Por seus estilos arquitetônicos, suas técnicas construtivas e sua própria presença física no mundo social, as edificações urbanas e rurais são suportes privilegiados da memória social. Ilustrando este texto aparecem dois prédios tombados pelo COMPAHC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural).
 
                                            À esquerda está a Capela Santo Antonio, no Bairro dos Casa, que remete ao passado rural da região.
                                              À direita está o antigo prédio do Jardim de Infância Santa Terezinha, registrado na década de 1960.
                                                               Hoje o espaço é ocupado pelo Centro de Memória de São Bernardo do Campo.
                                                                                A fotografia foi tomada por Celso Amaral, no ano de 2001.  
   
Notas
(1) Cf. Santos, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista: 1550 -1892. PMSBC, 1992. p. 22.
(2) Cf.  Oliveira,  José Joaquim Machado de.  Quadro Histórico da Província de São Paulo para uso das escolas de instrução pública. São Paulo: Tipografia Oficial, 1864. p.28.
(3) Em parte, as crônicas de Pessotti  nasceram do incômodo causado pela  percepção de que o pequeno e antigo centro urbano de  São Bernardo desaparecia  em face  ao progresso .  Uma delas, entitulada “A Vila De Noite”  traz um relato vívido deste estranhamento: “Hoje, ao passar pelo Centro, só se vê gente estranha, inclusive a juventude descendente de tantas família tradicionais - e que a maioria do nosso povo já não conhece mais – numa movimentação pelas ruas (...). À noite,  nas avenidas bem cuidadas  e feéricamente iluminadas, é intensa a movimentação de veículos barulhentos em demanda aos grandes restaurantes(...). Vislumbra-se um amigo, vez ou outra um amigo, puxa-se uma prosa, que fica sempre perturbada pelo irritante ruído de veículos (...). E a conversa  quase sempre termina com aquela expressão nostálgica: Bons tempos aqueles ...!” . Cf. Pessoti, Atílio. Vila de São Bernardo. São Bernardo do Campo:  PMSBC, 1981. p.103.
 

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