Se o ano de 1968 sobrevive no imaginário popular como o ano da rebelião estudantil, a revolta estudantil de maio de 1968 na França é um de seus pontos altos mais indeléveis, um evento cujo senso de possibilidade é memorizado em seus slogans e grafites mais famosos, como por exemplo: “é proibido proibir”,” todo o poder da imaginação”,” sob os paralelepípedos, a praia”,” a barricada fecha a rua, mas abre o caminho” e, talvez o mais famoso,” seja realista, exija o impossível”. Todos esses slogans aparecem ciclicamente, em canções, trechos de livros, obras de Arte e incentivam outros slogans em novas manifestações.

A rebelião de maio de 1968 teve profundas raízes políticas, que tiveram origem nas contradições de “les trente glorieuses” (os trinta anos gloriosos) - um termo que se refere aos trinta anos que vieram imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial -, que foram caracterizados por um crescimento econômico maciço (patrocinado pelo “keynesianismo” nos EUA e pelo “welfare state” na Europa) até como seus benefícios foram distribuídos desigualmente e pelos desequilíbrios criados. 

O governo altamente centralizado estabelecido sob a Quinta República da França, com o autoritário general de Gaulle em seu comando, dominou a paisagem da política francesa mesmo com o crescimento da oposição e o descontentamento fermentando sob a superfície. O período viu uma expansão massiva da educação como resultado de mudanças demográficas, de modo que o número de alunos matriculados na faculdade cresceu de 60.000 em uma população de 42 milhões antes da Segunda Guerra Mundial para 500.000 em uma população de 50 milhões em 1968.  Apesar da imensa desigualdade de classes em todo o sistema educacional francês, a expansão do ensino superior também levou a um número crescente de estudantes da classe trabalhadora nas universidades, mesmo que ainda permanecesse como uma minoria.

Os primeiros incidentes que anunciariam os acontecimentos de maio de 1968 ocorreram no início daquele ano na Faculdade de Nanterre, inaugurada em 1963 para aliviar o congestionamento da Sorbonne, em Paris. Isolado no meio de um bairro popular, esse campus mostrou-se propício à fermentação política e ao desenvolvimento de movimentos de esquerda, que defendiam a revolta contra a instituição universitária, considerada uma das engrenagens da sociedade capitalista. Radicalizado pelas guerras da Argélia e do Vietnã, um pequeno grupo de estudantes esquerdistas começou a se organizar no campus para objetivos tão diversos como o direito de visitar dormitórios para sexos opostos depois do expediente, acabar com a Guerra do Vietnã e a repressão policial. A noite de 10 de maio se tornaria conhecida como a “Noite das Barricadas”, pois os estudantes ocuparam as ruas ao redor da Sorbonne e construíram barricadas para se defenderem da tropa de choque

Em 22 de março, estudantes de Nanterre ocuparam um prédio onde criaram comissões para discutir as lutas estudantis e operárias em conjunto, desigualdade de classes e imperialismo. Dessa ocupação, nasceu o “Movimento 22 de Março”, que seria um grupo influente na revolta estudantil de maio. As tensões crescentes entre o grupo de 22 de março, o grupo de direita Occident (que incendiou os escritórios de uma associação estudantil na Sorbonne) e os administradores da universidade levaram a última a fechar Nanterre em dois de maio e apresentar acusações disciplinares contra oito líderes estudantis. 

Em três de maio, quando a polícia tentou entrar no prédio à força, atacando e prendendo estudantes no processo, estes se levantaram recusando-se a ser intimidados, levando a uma noite de provocações mútuas que prenunciou as batalhas que viriam. No dia seguinte, a Sorbonne também foi fechada e uma greve universitária nacional convocada por estudantes e professores.

A partir de então, a agitação mudou para o centro de Paris; o que foi apenas uma série de incidentes se transformou numa crise nacional. Tudo mudou em três de maio, quando a polícia interveio repentinamente para dispersar o protesto realizado pelos estudantes no pátio da Sorbonne. A repressão (500 prisões) provocou imediatamente a solidariedade da comunidade estudantil com a minoria militante. A revolta estudantil começou nas ruas do Quartier Latin. Barricadas, lajes, coquetéis molotov, contra-ataques da polícia, cassetetes e gás lacrimogêneo: os confrontos aumentavam a cada dia, acompanhados ao vivo no rádio pela população.

O clímax foi alcançado na noite de 10 para 11 de maio: estudantes e a polícia se enfrentaram em verdadeiras brigas de rua (carros queimados, ruas sem calçamento, vidros quebrados), deixando centenas de feridos. No rescaldo dessa "noite das barricadas", o país ficou atordoado. A agitação estudantil, até então isolada, encontrou a simpatia da opinião pública: no dia 13 de maio, em Paris e por toda a França, sindicatos protestaram com estudantes contra a brutalidade policial. A crise assumiu, então, uma nova dimensão, porque no dia seguinte, de forma inesperada e espontânea, começou uma onda de greves. A revolta estudantil foi seguida por uma verdadeira crise social.

Cansados ​​de greves ocasionais e negociações infrutíferas, os trabalhadores decidiram conter a intransigência dos patrões com mais severidade. Na noite de 14 de maio, os da Sud-Aviation, nos subúrbios de Nantes, ocuparam sua fábrica e sequestraram o diretor. Nos dias 15 e 16, a greve atingiu as fábricas da Renault em Cléon e Sandouville (Seine-Maritime), Flins e Boulogne-Billancourt. Aos poucos, até o dia 22 de maio, e sem uma palavra de ordem sindical nacional, o movimento se espalhou.

Finalmente, entendendo melhor o que estava em jogo, o poder acaba reagindo. No dia 24 de maio, durante discurso na televisão, o General de Gaulle, Presidente da República à época, anunciou a realização de um referendo sobre “renovação universitária, social e econômica”, ameaçando se retirar em caso de vitória do “não”. Seu anúncio não surtiu efeito. O discurso ecoou entre os manifestantes e os parisienses fizeram pela segunda vez barricadas nas ruas. A noite de 24 para 25 de maio culminou no ápice do confronto.

O que começara como um protesto estudantil, tornou-se uma disputa trabalhista, que, na verdade, se tornou uma crise política.  O país se encontrava paralisado por sete milhões de grevistas declarados (sem contar os funcionários desempregados técnicos, ou bloqueados pela falta de transporte), configurando uma paralisia no governo.  Em fábricas, escritórios, serviços públicos, transportes, todas as obras paradas. Essa foi uma situação sem precedentes: em 1936, os grevistas eram apenas dois milhões, e apenas o setor privado fora afetado. Nascidas de forma espontânea, as greves de maio de 68 foram enquadradas apenas a posteriori pelos sindicatos, que, no entanto, aderiram o máximo possível ao movimento, tentando traduzi-lo em demandas negociáveis.

A confusão estava definitivamente instalada quando, em 29 de maio, ninguém mais sabia por onde andava o Presidente. Charles de Gaulle tinha deixado a França. Chegava a hora da concorrência política: foi então que Pierre Mendes-France e François Miterrand, dois líderes de esquerda, selaram uma coligação provisória para constituir um governo de transição, que foi imediatamente interrompida pela volta do Presidente De Gaulle e a dispersão das manifestações de rua, que já estavam sendo desmobilizadas.

O maio de 1968 na França foi um movimento no qual a política, a cultura e os costumes estiveram no centro do debate, sem hierarquização e com muita influência de uma mistura de anarquismo com neoiluminismo. Estudantes e operários colocaram as divergências de lado e ocuparam as ruas, cruzando reivindicações muitas vezes divergentes na forma e conteúdo. Na verdade, o maio de 68 constituiu um movimento cultural e social de um novo tipo, à parte dos partidos e sindicatos tradicionais. Desafiou a sociedade de consumo e a ideologia produtivista que o inspirou, mais preocupada com a rentabilidade financeira do que com a felicidade dos homens; ele denunciou a alienação por meio de objetos e a criação permanente de novas necessidades. Foi uma espécie de revolução despedaçada e interrompida, cujos fragmentos e reinterpretações seguem influenciando muitos eventos históricos posteriores.

 

Fontes – Referências

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/23/cultura/1524504798_329892.html

https://www1.folha.uol.com.br/webstories/cultura/2020/07/o-que-foi-o-maio-de-68/

https://www.revistas.usp.br/ts/article/download/86781/89783/0

https://outraspalavras.net/sem-categoria/maio-de-1968-e-o-sentimento-do-inacabado/

https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/maio-de-1968-um-convite-ao-debate/