No Brasil, a história do século XX foi marcada por grandes movimentos migratórios e intensos processos de urbanização, modernização e industrialização. Os primeiros colocaram em contato - nas áreas de recepção de migrantes - histórias, etnias e culturas de diversas regiões do país e do mundo, enquanto que os segundos promoveram uma extraordinária diversificação nas estruturas econômicas e sociais, criando novos modos de vida. A região da grande São Paulo foi o grande centro onde estes fenômenos convergiram. O município de São Bernardo, localizado nesta mesma área, foi profundamente marcado por ambos os processos. A trajetória biográfica do engenheiro elétrico Abib Riskalla ilustra estes importantes acontecimentos históricos, fazendo-os reverberar, de maneira peculiar, na história da cidade na qual residiu por mais de 70 anos.

“Meus pais eram Riskallah Abib e Nida Rahal Abib. Nasceram na Síria, nas colinas de Golam, em um vilarejo que foi destruído e que hoje está nas mãos de Israel (...). Na época, a Síria era uma bagunça. Por que vieram de lá? Porque um dia vinha o inglês e matava todo mundo, depois vinha o francês, o turco invadia (...). Era uma instabilidade muito grande (...). Em 1926, meu pai e meu tio Pedro, que já estavam no Brasil, foram para Síria, chegaram no meu avô materno - que era Sheikh na cidade, e com ele foram até minha mãe e minha tia, que estavam ceifando trigo no local.  Meu avô disse: -  Venham cá  vocês duas. esse vai ser seu marido e aquele vai ser seu marido. E foi assim que se casaram. Algo que hoje seria impossível. Foram morar em Canguera – distrito de São Roque, no interior de São Paulo - onde nasci em 26 de abril de 1929”.  Foi dessa maneira que Abib descreveu a trajetória de sua família, iniciando o depoimento que concedeu aos pesquisadores do Centro de Memória de São Bernardo do Campo, em 3 de maio de 2012 (1).

No interior de São Paulo, seu pai foi pecuarista e comerciante em São Roque e, posteriormente, em Boituva, foi também agricultor. Por insistência da mãe, Abib foi matriculado no Liceu Coração de Jesus, na capital paulista, onde cursou, como interno, o ginásio e o primeiro ano do colegial científico, sendo obrigado a deixar a escolar, em 1946, por falta de condições financeiras. No final da década de 1940, depois de concluir o colegial em Sorocaba, Riskallah mudou-se para São Bernardo, local onde sua mãe possuía alguns familiares, como o primo Adib Moysés Dib, comerciante fundador da primeira loja maçônica da cidade (2) e pai do futuro prefeito Wilham Dib: “O Adib era um homem que não estudou, mas tinha uma inteligência fenomenal. Ele era meu guru, o que era isso, guru? Ele era o mais velho da família e nós temos isso na raça. A gente consulta... pede muito conselho.”, contou Abib

Ao mesmo tempo em que estudava engenharia elétrica na Escola de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Abib trabalhava na condução de um armazém familiar, situado na altura do atual número 1000 da Rua Marechal Deodoro. Neste mesmo local, em 1950, abriu um estabelecimento de venda, instalação e manutenção de aparelhos eletrônicos, onde expôs e comercializou a primeira televisão na cidade: “Quando eu estava me formando, resolvi montar uma oficina de manutenção de rádio, Naquela época só tinha rádio. (...). Em 1950, apareceu a televisão. Aí só tinha eu no ABC.Todo mundo tinha que comer na minha mão, porque eu instalava TV e também vendia.(...). Essa TV aqui fez furor em São Bernardo. Eu punha na porta da loja  pra ver futebol.  E meu tio (Moisés Cheid) que tinha o cinema (O Cine Anchieta, localizado  em frente da loja) falava: Tira essa porcaria, se não ninguém vai na matinê!” (3).

Entre 1957 e 1958, graças à ajuda do prefeito Lauro Gomes, passou várias temporadas nos Estados Unidos, onde fez cursos de radiocomunicação, na fábrica da Motorol , em Chicago;  de manutenção de  televisores RCA-Victor, em Nova York e de televisores G.E, em Utah. De volta a São Bernardo,  retomou as atividades em seu estabelecimento, passando também a fazer manutenção de radiocomunicadores – foi responsável por instalar  primeiro sistema com os equipamentos na Via Anchieta (4) -  e aparelhos elétricos de diversas grandes indústrias recém chegadas na região,  como a Borg Warner, a Crysler, Odeon  e a Volkswagen.  Prestou serviços de manutenção em várias transmissoras de rádio nas redondezas, entre elas a da Rádio Rercord, na Paulicéia, e a da Rádio Independência, a primeira emissora de São Bernardo do Campo, posteriormente vendia para o grupo Diário do Grande ABC, para quem Abib continuou trabalhando por vários anos. Prosseguiu atuando no ramo de telecomunicações por toda sua vida.   Entre 2011 e 2020 foi frequentador assíduo do evento “Conversas de Memória”, que reúne mensalmente diversos memorialistas da cidade na sede do Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

Abib foi um dos primeiros técnicos da área de engenharia elétrica a residir e atuar em S. Bernardo do Campo.  Desde as grandes indústrias multinacionais até os humildes agricultores das colônias - os antigos bairros rurais ainda parcialmente ocupados por agricultores descentes de italianos - foram muitos o que fizeram uso das habilidades de Riskallah no momento da recepção e adaptação de novidades eletroeletrônicas na região, em uma época de grandes transformações sociais e culturais (5).

 

               À esq: Abib Riskallah. 2011. À dir: uma televisão â venda na loja de Abib, no início da década de 1950.

 

Notas:

(1) – Cf. Riskallah, Abib. Depoimento. 3/5/2012. Banco de História Oral. Centro de Memória de São Bernardo do Campo. Todos as transcrições de falas de Abib Riskallah presentes neste texto foram extraídos deste mesmo depoimento.

(2) – Cf. Câmara Municipal de São Bernardo do Campo. Lei nº 5522, de 31 de maio de 2006.

(3) – Um dos irmãos de Abib, o comerciante Anuar Riskallah narrou  aos pesquisadores do Centro de Memória a sua perspectiva sobre uma cena destes primeiros momentos da televisão em SBC: “Ele ligava uma televisão grandona para o pessoal na rua parar e assistir-  ele botava uma cerquinha na frente (da loja) -  porque quase ningúem tinha televisão naquela época. “.

(4) – Cf. Medici, Ademir. “Rádio,TV,comunicação. Ele acreditou na eletrônica moderna. E fez a alegria de muitas crianças”. Diário do Grande ABC. 03/03/2022.

(5) - Apaixonado como  era por tecnologia, Abib aplicava seus conhecimentos também em sua vida privada,  como aconteceu em 1958,  quando “customizou” um automóvel studibaker, adaptando no carro uma pequena televisão portátil.  

 

Pesquisa, texto e Acervo:

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Telefone: 4125-5577.

E-mail: memoria.cultura@saobernardo.sp.gov.br

 

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