Desde a antiguidade até o advento da revolução industrial a maior parte da humanidade encontrou em atividades agropecuárias sua ocupação principal. Na medida em que a industrialização avançava pelo mundo, em ritmos muito desiguais, durante o século XIX e a primeira metade do século XX, se tornava possível e, frequentemente necessário, que uma porcentagem cada vez maior da população abandonasse a agricultura e a vida rural e se engajasse em trabalhos urbanos. Na antiga Vila de São Bernardo, foi só por volta da década de 1940 que as ocupações industriais se tornaram predominantes. Antes disso, a vida rural e agrícola tiveram uma longa história na região. Já nos tempos de Santo André da Borda do Campo – município que existiu em algum ponto da atual Região do Grande ABC entre 1553 e 1560, se registra a existência de pastos e também de roças, onde se atestou a presença de plantações de mandioca e de produção de farinha, possivelmente de trigo, cereal que se tornou comum nos arredores de São Paulo no século XVII. Nos anos finais do século XVIII e até o terceiro quartel do século XIX, a região se caracterizou como bairro rural da capital paulista, e a agricultura aqui praticada visou, sobretudo, a subsistência dos proprietários rurais - juntamente com suas famílias e seus escravos – e o abastecimento da sede urbana paulistana. Entre 1798 e 1827, o número de propriedades agrícolas na área variou, aproximadamente, entre 110 e 150, com o predomínio do cultivo do milho – o produto mais comum, da mandioca e do feijão (2). Por volta da década de 1850, destacaram-se as plantações e a fabricação de chá do Alferes Bonilha, um dos grandes fazendeiros da região, cuja sede da propriedade ficava na atual esquina da Rua Marechal Deodoro com a Rua Tenente Sales. Em 1877, as três grandes fazendas dos monges beneditinos na região - e também parte das terras que foram do Alferes Bonilha - foram vendidas ao governo imperial para que fossem destinadas à recepção de imigrantes estrangeiros. Como resultado, no território da atual São Bernardo do Campo, surgiram centenas de pequenas propriedades agrícolas. Em 1897, existiam 540 lotes rurais, com 15 hectares em média, adquiridos por colonos originários, principalmente, da Itália e da Polônia (3). No ano de 1900, um documento administrativo do Núcleo Colonial São Bernardo registrou em detalhe a produção agropecuária das linhas coloniais do Rio Grande, Capivary, Rio Pequeno, Campos Sales e Bernardino de Campos, todas localizadas no atual distrito do Riacho Grande.  Os dados revelaram a presença de culturas de batata doce, milho, mandioca – os três produtos mais cultivados – mas também de ervilha, feijão, batata inglesa, uvas, abóboras, repolho, abacaxi, cana de açúcar e verduras diversas, além da criação de porcos e galinhas (4). Nestas áreas, a comercialização da madeira (em forma de lenha, de serrados diversos ou transformada em carvão) gerava mais lucro que a agricultura e foi amplamente explorada. Nesta época, o município se destacava na viticultura e na produção de vinho, de modo que, em 1898, no âmbito estadual, foi o maior produtor da bebida e também o detentor da maior quantidade de videiras produtivas – 494 mil pés (5). Na época do Núcleo Colonial S. Bernardo, a agricultura continuava tendo como função primordial a subsistência das famílias e, em segundo lugar, a comercialização de excedentes. Ao longo do tempo, desde a última década do século XIX e no decorrer do século XX, muitos lotes foram vendidos e subdivididos e, mais tarde, entre as décadas de 1920 e 1970, grande parte deles foi urbanizada, dando origem a muitas Vilas e Jardins nos atuais bairros da cidade. Pelo menos até a metade do século XX, as atividades rurais ainda eram muito importantes na cidade, sendo praticadas até mesmo na região central, nos antigos lotes urbanos do Núcleo Colonial. Nas décadas seguintes, com o avanço da industrialização e da urbanização, o papel das atividades agropecuárias foi caindo até se reduzir ao ponto atingido em 1980, em que apenas 0,55 % da população economicamente ativa se dedicava a elas como sua ocupação principal (6). Atualmente o Centro de Memória de S. B. C guarda diversos documentos históricos contendo testemunhos escritos e orais deste modo de vida, frequentemente muito difícil e penoso, que marcou profundamente a história da humanidade por milênios e hoje está muito distante da experiência e da memória dos moradores dos grandes centros urbanos, especialmente das gerações mais novas. Um deles é o depoimento de Ludia Demarchi Batistini, nascida em 1909, filha do colono e lavrador italiano Matheo Demarchi, que relata experiências de vida rural que tiveram lugar em sua infância em São Bernardo, e do qual transcrevemos aqui alguns trechos: “O meu serviço era catar capim para os animais, para as vacas, limpar a cocheira, deixar tudo limpinho. As vacas, de dia, ficavam soltas, mas de noite, ficavam presas, então de manhã tirava leite e tinha que dar comida, O meu serviço era esse (...). A gente plantava milho. Os meus irmãos, que eram pequenos, faziam as covas e jogavam milho, chutavam a terra e tampavam com o pé. Depois que o milho crescia e brotava, quando ele ainda era pequeno, em muitas covas, nascia bastante. Então a gente, que era criança, arrancava os mais miúdos e deixava só três ou quatro pés de milho, para ele crescer forte (...). Lembro que era tempo de frio, e nos mandaram limpar canteiro. Mas era tão frio que a gente não aguentava. O pé ficou gelado. O meu e o do meu irmão. Ficou duro. Então nós vimos que havia um monte de estrume (que eles faziam, limpavam as cocheiras e levavam tudo para lá, para depois  distribuir na terra para fertilizar)  que saia fumaça. Pensamos que devia ser quente e enfiamos o pé lá dentro. Mas nem queira saber! Quando saímos de lá saiu cada bolha! O estrume lá era forte. Eu sei dizer que a gente ficou cheio de ferida e por uma porção de tempo a gente quase não podia andar.”. Imagens: Acima – Região do Largo da Matriz. Década de 1880. Detalhe.No quarteirão entre as atuais ruas Marechal Deodoro, Rio Branco e Padre Lustosa, e, também, no morro da Vila Duzi, pode-se observar terras preparadas para o cultivo de videiras, que acontecia mesmo na região mais urbanizada e central da antiga Freguesia de São Bernardo. Abaixo. Terras cultivadas no atual bairro rural Santa Cruz. 2000. Fotógrafo: Marcos Ferraz.

NOTAS:
1– Cf. Atas da Câmara de Santo André da Borda do Campo. Ano de 1556. 22 de janeiro e 22 de setembro. In:Taunay, Affonso de E. João Ramalho e Santo André da Borda do Campo.  São Paulo, 1953. ps. 170, 284, 298-299.
2– Cf. Jacobine, Rodolfo Scopel. A Freguesia de São Bernardo: aspectos socioeconômicos da região do ABC Paulista entre o tempo colonial tardio e a alvorada do Império. 2012. 69p. Artigo inédito, arquivado na Biblioteca Nacional e no Centro de Memória de S. B. C. ps. 25 e 31.
3– Cf. Livro de Matrícula dos Colonos – Núcleo Colonial de São Bernardo/Sede. Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo. (1877/1892). Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo.
4 – Cf. Livro Auxiliar do Recenseamento - Núcleo Colonial de São Bernardo. Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo. 1900. Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo
5– Cf. Relatório do Ano de 1898. Repartição de Estatística e do Arquivo do Estado de São Paulo. São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, [Apresentado em 20 de setembro de 1899 ao cidadão Dr. José Pereira de Queiroz, Secretario de Estado dos Negócios do Interior, pelo Dr. Antonio de Toledo Piza, Diretor], 1900.ps. 461 e 483. Acervo: Fundação SEADE.
6 –Cf. IBGE. IX Recenseamento Geral do Brasil.1980. Volume 1. Tomo 15. Nº 19.  São Paulo.  Censo Demográfico. Mão de Obra. Rio de Janeiro, 1983. p.230.  
7 – Cf. Batistini, Ludia Demarchi. Depoimento. 6/1/1988. Banco de História Oral. Centro de Memória de S. B. C.
Pesquisa e Acervo: Centro de Memória de São Bernardo do Campo

 

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