Em tempos de alimentos industrializados, supermercados e comida pronta encomendada pela internet, muitos hábitos alimentares do passado já desapareceram ou tendem a ser esquecidos. Outros permaneceram,  geralmente com  algum grau de modificação,  sem que suas origens sejam lembradas pela maioria do população. 

No Brasil do  século XVI, quando os portugueses se instalaram na área da atual região metropolitana de São Paulo, onde se encontra o município São Bernardo do Campo, ali encontraram,  sobretudo,  indígenas de cultura  tupi. Eram índios  que se alimentavam  de suas caças, de seus pescados, de  frutos coletados e dos produtos das hortas que cultivavam, como a mandioca,  que  era a base de sua  alimentação (1). Com ela se preparava farinha – através de raspagem e  assamento – mingau, beiju e pirão.

A vila de Santo André da Borda do Campo, primeiro município português estabelecido em algum ponto da atual região do Grande ABC,  que existiu entre 1553 e 1560, deixou registros da chegada  de elementos europeus na alimentação  brasileira. O gado bovino e suíno, que  eram desconhecidos dos índios , foram criados nas fazendas da região, como atestam as atas da Câmara de  vereadores daquele município. As mesmas atas registraram também a introdução da mandioca na dieta dos habitantes de Santo André. Os portugueses aprenderam com os índios que era necessário espremer a mandioca para retirar, junto com um líquido,  a toxidade do alimento. Certa vez a Câmara de Santo André ordenou aos seus moradores que espremessem a mandioca “dentro de suas casas  ou em seus quintais ” e que “a água que sai da mandioca” fosse “ botada numa cova  e não fizesse prejuízo ao gado”,   que eventualmente ficava solto e tinha contato com fossas onde se acumulava lama  com resíduos tóxicos de  mandioca (2).

O peixe era outro elemento fundamental para a alimentação dos povos da região, tanto é que ausência de rios suficientemente  piscosos nas proximidades de Santo André foi citada, pelo Padre Manuel da Nóbrega,  como motivo para transferência desta povoação para as proximidades do Rio Tamanduateí, no atual centro da capital paulista, a qual por muito tempo foi conhecida como Vila de São Paulo de ”Piratininga”, que quer dizer, em tupi, “terra do peixe seco” (3).

No século XVII elementos indígenas e portugueses continuaram a se misturar na dieta dos moradores da Vila de São Paulo, da qual a região da então Borda do Campo - território do atual ABC – era um bairro  rural.  O arroz, o trigo – que proliferou nesta época - e algumas frutas – como o marmelo – foram introduzidos pelos portugueses, enquanto que o feijão e o milho – que se tornou muito comum a partir deste momento - tinham origem tupi. Do milho se preparava a  canjica e o angu, pratos muito consumidos, segundo o  Padre Manuel da Fonseca, devido a escassez de sal na região: “(a canjica)  consta de milho grosso quebrado em um pilão (...). "E um manjar tão puro e simples que, além da água em que se coze, nem sal se lhe mistura. Finalmente, é sustento próprios de pobres, pois só a pobrezas dos índios e a falta de sal por aquelas partes podiam ser  os inventores de tão saboroso manjar." (4). 

Embora o feijão comum e o feijão preto tivessem origem americana, o alimento não era especialmente comum na dieta dos ameríndios na época do descobrimento do Brasil ” (cascudo,163). No entanto, no decorrer dos  séculos seguintes foram se tornando cada vez mais comuns na dieta dos brasileiros e dos africanos escravizados (cascudo,239). que, no seu continente de origem conheciam outras variedades de feijão – como o hoje denominado “fradinho” (cascudo,239). No século XVIII, nas lavouras da Fazenda São Bernardo, sua produção foi registrada - um total de 150 alqueires anuais - juntamente com a farinha, o arroz, a laranja, o marmelo e a carne bovina, indicando sua presença – e a dos demais produtos – na dieta dos habitantes do então denominado Bairro de São Bernado (5).

No Bairro e – a partir de 1812 – na Freguesia de São Bernardo, entre final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX,  o milho, o feijão, a farinha de mandioca  eram  os pilares da agricultura, cuja produção se destinava, majoritariamente,  à população local.  Nesta época, o  arroz também era cultivado, ainda que em menor grau, e as criações de gado bovino também se faziam presentes (6).

No século XIX, a atual região metropolitana paulistana ainda exibia costumes alimentares  cujo conhecimento poderia surpreender muito seus habitantes contemporâneos. Um deles é o horário das refeições: almoçava-se às 9h da manhã; jantava-se  às 14h ou às 15h, a noite, às 20 horas poderia haver um lanche ou uma ceia. Outro era o hábito de consumir formigas: saúvas fêmeas torradas eram vendidas em tabuleiros na região central de São Paulo (7).

Com a chegada de imigrantes, em sua maioria italianos, ao Núcleo Colonial São Bernardo,  em 1877,  os tradicionais alimentos paulistas continuaram a ser cultivados, uma vez que, à exceção da mandioca, já eram conhecidos dos recém-chegados. A batata inglesa e a batata doce também se tornaram muito comuns na região entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.  O mesmo aconteceu com  diversas frutas,como a pêra,  e em especial com a uva, que os italianos cultivaram em grande quantidade para produção do vinho, tornando o município um dos mais produtores da bebida no Estado de São Paulo ( 8 ) .

Na segunda metade do século XX, o município de São Bernardo do Campo se tornou famoso por abrigar, na região do Bairro Demarchi,  a “Rota dos Restaurantes”, onde o prato mais célebre era o “frango com polenta”. O prato reflete  tradições antigas e de diversos locais. Originalmente, na Itália romana, a polenta era o nome dado a uma  sopa feita de farinha de cevada.  Posteriormente, com a introdução do milho – de origem ameríndia – na Europa, a partir do século XVI, passou a ser produzido a partir do fubá, e foi assumiu a forma  sólida atual (10). No século XIX era um alimento consumido  pelas camadas mais pobres da população  italiana, que o introduziram  em São Bernardo. O frango, por outro lado, era desconhecido dos ameríndios e chegou ao Brasil com os portugueses, sendo posteriormente consumido pelos indígenas e todas as populações que chegaram ao país.

Por volta da décade de 1980, São Bernardo do Campo já era uma grande cidade com mais de 450 mil habitantes, que abrigava migrantes de diversas partes do mundo e do Brasil, os quais trouxeram hábitos alimentares próprios de suas culturas. Esta condição multicultural se refletiu, desde então, na variedade de estabelecimentos comerciais relacionados à alimentação  e nos   produtos neles disponíveis: restaurantes nordestinos e mineiros – ambos influenciados pela culinária afrodescendente; restaurantes árabes e japoneses; pizzarias italianos; pastelarias japonesas; casas do norte – comuns no trecho final da Rua Marechal Deodoro próximo ao bairro ferrazópolis, também ligadas à cultura nordestina; restaurantes self-sevice onde se encontram  disponíveis, muitas vezes lado a lado,  a feijoada luso-brasileira, o quiabo  cozido africano, o sushi japonês, o kibe árabe, e as massas italianas. 

 

Acima -> Farinha de mandioca. Arroz com Feijão. Polenta assada. Fotografias livres de direitos autorais  retiradas do sítio eletrônico dreamstime. Abaixo-> Avenida Servidei Demarchi. 1991. Acervo: Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

 

 

Notas:

(1) – Cascudo, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. Volume 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1967.   p.94.

(2) – Taunay, Affonso de E. “João Ramalho e Santo André da Borda do Campo”. Publicação comemorativa do IV Centenário da Vila de Santo André da Borda do Campo. 2ª edição. São Paulo, 1968. p. 169 e 170.

(3) - Cf. Santos, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista: 1550-1892. PMSBC, 1992. p. 46.

(4) – Cf. Bruno, Ernani Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo.  p.254,259,260.  

(5) – Cf. Martins, José de Souza. A escravidão em São Bernardo na Colônia e no Império. São Paulo: Centro Ecumênico de Documentação e Informação/Quilombo Regional do ABC/Pastoral do Negro, 1988. p.22.

(6) - Cf. Jacobine, Rodolfo Scopel. A Freguesia de São Bernardo: aspectos socioeconômicos da região do ABC Paulista entre o tempo colonial tardio e a alvorada do Império. 2012. 69p. Artigo inédito, arquivado na Biblioteca Nacional e no Centro de Memória de S.B.C. p. 25-27.

(7)- Cf. Campos, Alzira Lobo de Arruda. Vida cotidiana e lazer na São Paulo oitocentista. In: Porta, Paula (org.). História da cidade de São Paulo – A cidade no Império ( 1823-1889). São Paulo: Paz e Terra, 2004. p.275.

( 8 ) – Cf. Relatório do Ano de 1898. Repartição de Estatística e do Arquivo do Estado de São Paulo. São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, [Apresentado em 20 de setembro de 1899 ao cidadão Dr. José Pereira de Queiroz, Secretario de Estado dos Negócios do Interior, pelo Dr. Antonio de Toledo Piza, Diretor], 1900. ps. 461 e 483. ; Estatistica Agricola e Zootécnica, 1934-1935. São Paulo: Secretaria da Agricultura, Indústria Comércio, 1936. p.38,39, 54 e 55.

(9) – Cf. Cascudo, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. Volume 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1967.   p. 163 e 239.

(10) – Cf. Ibidem. p. 60 e 61

 

 

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