O trecho central da Rua Marechal Deodoro, situado aproximadamente entre a atual Av. Prestes Maia e a Rua Silva Jardim, foi o primeiro a ser densamente ocupado por edificações, em especial no quarteirão localizado entre as ruas Padre Lustosa e Dr. Fláquer, já quase completamente preenchido em 1902 (1), sendo esta a primeira localidade da cidade a apresentar tal condição. O registro documental mais antigo do referido espaço é a aquarela do inglês Charles Landseer, produzida em 1827, que já mostrava diversas casas no quarteirão defronte ao largo da matriz e arredores. Local em que, poucos ano antes, havia sido instalada a Freguesia de São Bernardo, a pequena área então circundada por intermináveis terras de uso rural. A via, que na década de 1890 começaria a ser conhecida como Rua Marechal Deodoro, era então apenas uma parte da estrada que ligava São Paulo e Santos. Posteriormente, plantas datadas de 1832 (2) e 1880 (3), continuavam apresentando uma ocupação bastante escassa em toda a área e uma minúscula aglomeração nos arredores do largo. Na década de 1890, por outro lado, nos livros de registro de impostos da prefeitura, podemos ver um significativo aumento na ocupação na maior parte da rua.

A sede urbana do Núcleo Colonial São Bernardo , estabelecida em 1877 e progressivamente ocupada, abrangia quase toda a área entre a Rua Dr. Fláquer e a Rua Silva Jardim. Era composta, na maioria dos casos, de lotes relativamente grandes, os quais chegavam a ter entre 40 e 80 metros de frente para a Marechal Deodoro, na parte entre a Américo Brasiliense e a Silva Jardim. Por outro lado, os imóveis que estavam entre a atual Avenida Prestes Maia e a Dr. Fláquer se encontravam fora do núcleo colonial, e também foram ocupados majoritariamente por imigrantes, algumas vezes constituindo uma segunda propriedade de colonos estabelecidos em outra parte do município ou na mesma região central. Boa parte deste último trecho era constituído por muitos lotes estreitos, aglomerados entre o largo da Matriz e esquina da Dr. Fláquer. O crescimento urbano da área coincide e se relaciona com a enorme intensificação da imigração - sobretudo italiana - para o estado de São Paulo, entre 1888 e 1897, gerando aumento demográfico e oportunidades econômicas na região (4).

Em 1891, existiam 10 armazéns de secos e molhados no trecho central da Rua Marechal Deodoro. O único que não pertencia a italianos era o do Tenente Francisco Antônio de Oliveira Sales, localizado em um enorme terreno, defronte à atual Praça Lauro Gomes. Este imóvel foi adquirido por Antonio Caputo e João D´Angelo, em 1912 (5 ). No local foi construída uma fábrica de móveis – posteriormente conhecida como Fábrica de Móveis São Bernardo - a qual existiria até por volta de 1980. Ainda na mesma data existiam dois açougues, ambos pertencentes à família de descendentes de alemães Beber Filisbino. Um deles, estava localizado na esquina da Rua Padre Lustosa, um dos mais antigos e regulares pontos comerciais da cidade, o qual havia sido adquirido ao também comerciante Marinho Salvador de Barros em 1886 (6) , e que posteriormente abrigou outros estabelecimentos e a ainda lembrada Pastelaria ABC. Hoje existe uma loja de calçados no local. Também foram comuns, entre 1890 e 1930, as lojas de fazendas e armarinhos. A mais antiga delas foi a que pertenceu a Luiz Miele, que existiu entre 1886 e 1900 na esquina com a Rua Rio Branco, onde hoje existe uma grande loja de roupas (7).

Até as primeiras décadas do século XX, a área concentrava também os praticantes de ofícios urbanos tradicionais, sendo que alguns deles permaneceram muitos anos no mesmo local com a mesma atividade: os sapateiros Antonio Pasin e Luiz Toninato; a parteira Teresina Fantinatti; o alfaiate Miguel Montanha; o carpinteiro e ferreiro Guilherme Bellinghausen; e o seleiro Arthur Maranesi; o funileiro Luigi Mania ; o barbeiro Aniello Amiratti; diversos ferreiros, como Claudio Sbrigh e Wenceslau Richter (8) . Alguns dos primeiros serviços públicos da freguesia e do município de São Bernardo também tiveram sede no local. A pioneira escola de primeiras letras, surgida em 1833, provavelmente ficava à beira da estrada ou muito próxima, no seu entorno. O primeiro cartório, cujo escrivão era Manoel Eduardo de Almeida, funcionou na segunda metade do século XIX em uma casa localizada defronte à viela Angelo Linguanoto, onde há muitas décadas existe uma famosa loja de tecidos. A sede da Câmara Municipal se instalou altura do nº 1325 – entre 1893 e 1937 - e do nº 1240 – 1952 entre 1968. O casarão do Alferes Bonilha, primeiro sobrado da região, localizado na atual esquina da Rua Tenente Sales, abrigou a Hospedaria de Imigrantes ( aprox. 1877-1890), a Intendência Municipal (1890-1892), a cadeia pública (1890-1950) e diversas escolas (1909-1950).

Embora este trecho da Marechal Deodoro nunca não tenha sido prioritariamente industrial, até a década 1970, algumas indústrias importantes existiram no local: além das fábricas de móveis São Bernardo e São Luís, a indústria moveleira de José Pelosini, que funcionou aproximadamente entre 1926 e 1967, onde desde o final dos anos 1970 está o Shopping do Coração; a pioneira fábrica de Cerveja de Carlos Prugner (1886-1914), nas proximidades da esquina com Dr. Fláquer; e a Fábrica de Charutos de Italo Setti, próxima da esquina com a Américo Brasiliense.

Até meados do século XX, os principais locais destinados ao lazer na cidade também se concentravam na parte central da Rua Marechal Deodoro. Ali existiram: os campos de futebol do Esporte Clube São Bernardo ( 1928- 1970) – aproximadamente na esquina com a rua Prestes Maia – e do Palestra São Bernardo (1935-1950), que ocupou uma boa porção da atual Praça Lauro Gomes; Salão José Pelosini – anexo à fábrica homônima – e salão da Sociedade Italiana, dois espaços que abrigavam festas e bailes; o Cine Paulista (1911-1912) , o Cine Central (1925-1928) - apelidado “Cinema do Barbudo” - e o Cine São Bernardo, o mais longevo de todos, que existiu entre 1921 e a década de 1990.

Entre 1957 e 1973, o processo de verticalização da cidade teve início no local, com o surgimento do Edifício Wallace Simonsen (1957). Nas décadas de 60 e 70, seriam construídos o Edíficio Brasília (1967/1968), o Edifício Milena( 1966/1968), o Conjunto Arquitetônico Borda do Campo(1969/1970) e o Edifício Ilha do Governador (1972/1973). Alguns destes prédios abrigavam apartamentos residenciais, e passaram a concentrar a maior parte das moradias da Rua Marechal Deodoro. Graças a eles, a função residencial da rua, que havia sido forte desde suas origens, ainda persiste nos dias de hoje, em uma Marechal Deodoro sem indústrias e quase que completamente tomada por estabelecimentos de comércio e serviços.   

 

Duas fotografias do trecho central da Rua Marechal Deodoro, retratando desfiles comemorativos do aniversário da cidade, ambas tomadas em agosto de 1966. Nesta época diversos imóveis antigos, anteriores a 1950, ainda existiam na área. Pode-se ver também, na fotografia superior, o Edifício Milena na fase inicial de sua construção e, na fotografia inferior, o antigo casarão de Ítalo Setti – que abrigou comércio e indústria na década de 1890 e situava-se na esquina da Rua Américo Brasiliense. 

 

Notas

(1) - Cf. Delpy, Luís. Planta Cadastral de Vila de São Bernardo. 1902.

(2) - Cf. Planta da Estrada entre São Paulo e Santos, levantada por ordem de Rafael Tobias de Aguiar, presidente da província, no ano 1832, por José Marcelino de Vasconcelos, tenente coronel do Imperial Corpo de Engenheiros. Acervo da Biblioteca Nacional.   

(3) - Cf. Planta de Jurubatuba e parte de São Bernardo. Comissão de medição de lotes coloniais no município da capital da Província de São Paulo, a cargo do Engenheiro Doutor Leopoldo José da Silva. 1880 ( c. ). Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo

(4) - Holanda, Sérgio Buarque de (Org.). História da Civilização Brasileira. Tomo II - O Brasil Monárquico . Volume 3 - Reações e Transições. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969. ps. 277 e 308 ; Cenni, Franco. Italianos no Brasil “Andiamo in ‘merica...”. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1960. ps.171-172.

(5) - Cf. Livro de Notas do Escrivão do Juízo de Paz da Vila de São Bernardo (livro nº 23, 1912 -1913 ). p.25-26. Escritura de compra e venda entre partes. 6/4/1912. Acervo: 1º Tabelião de Notas da Comarca de São Bernardo do Campo.

(6) - Cf. Livro de Notas do Escrivão do Juízo de Paz da Freguesia de São Bernardo (livro nº 7, 1884 -1886 ). p.73. Escritura de compra e venda de uma morada de casa e quintal e um terreno anexo. 26/5/1885. Acervo: 1º Tabelião de Notas da Comarca de São Bernardo do Campo.

(7) - Cf. Câmara Municipal de São Paulo. Livro de registro de impostos. 1885-1886. Acervo: Arquivo Municipal Washington Luís.

(8) - Todas as referências feitas no texto ao comércio, à indústria e à prestação de serviços no município, entre 1890 e 1923, pode ser consultadas nas seguintes fontes: Câmara Municipal de São Bernardo. Procuradoria. Impostos diversos (1890-1892). Acervo: Museu de Santo André Dr. Octaviano Gaiarsa; Câmara Municipal de São Bernardo. Procuradoria. Impostos diversos (1893-1899); Câmara Municipal de São Bernardo. Impostos diversos. 1900-1903. Acervo Museu de Santo André Dr. Octaviano Gaiarsa; Câmara Municipal de São Bernardo. Imposto de Indústrias e Profissões (1911-1923).

 

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