Quando Attílio Pessotti publicou suas primeiras crônicas nos jornais locais,  no final da década de 1960, os escritos sobre a história de São Bernardo existiam em número muito reduzido. À parte de  dois ou três  trabalhos acadêmicos, os  textos mais extensos ainda eram o “Álbum de São Bernardo” de João Neto Caldeira e “São Bernardo – Terra Mãe dos Paulistas”  de Newton A.  Barbosa.  A memória e os temas da vida cotidiana ainda permaneciam quase intocados.  Em 1981,  quando a prefeitura municipal  publicou “Vila de São Bernardo” - o livro que reunia seus artigos -   o dia-a-dia da infância, da educação, da religião, da juventude, do trabalho  e do lazer no município durante as primeiras décadas do século XX  havia sido  percorrido e inúmeros fragmentos destes cenários haviam sido descritos com diligência e até certa preocupação literária por sua pena de memorialista e pesquisador (1) .

Nascido em São Bernardo do Campo, em 1917, Attílio descendia de imigrantes italianos da região do Vêneto.  O pai, Paulo Pessoti, chegou à São Bernardo  em 1877, ainda na primeira infância. A mãe, Margarida Scopel, chegou ao Brasil em 1885, aos 6 anos de idade,  acompanhada do pai Giacomo e outros 5 irmãos. Estabeleceram-se  na linha Jurubatuba do Núcleo Colonial São Bernardo-  na região do atual Bairro Assunção - por volta de 1887.  Em uma de suas primeiras crônicas, fazendo uso da memória oral familiar, Attílio descreveu diversas cenas típicas dos primeiros anos da imigração italiana para São Paulo, começando pelo embarque na Itália, no qual sua mãe ouviu de sua bisavó, depois de um abraço :  “ - Adeus filhinha , nunca mais te verei ...”.  Em seguida Attílio registra a viagem: “Longos dias ... e o enjoativo cheiro do mar; os enormes peixes que rondavam o navio, vistos através de grossos vidros; o mar violento que agitava a embarcação,  espalhando ruidosamente pratos e tigelas metálicas, com aquela humilde gente apavorada, agarrando-se uns aos outros, com náusea e vômitos , implorando a Deus pela sua sorte, até voltar a bonança e a nave deslizar suave rumo a seu destino”, quando  Giacomo anunciou “- Venha ver!  Avista-se a terra! É a América !”. Em seguida Pessotti passa às dificuldades da sobrevivência precária dos primeiros anos: moradia, doenças e o trabalho, sobretudo agrícola, mas ás vezes já  industrial ou na prestação de  serviços: “ Alguns não possuíam condução e se dispunham a fazer a caminhada toda a pé até a estação ferroviária  ou mesmo até São Paulo, saindo das colônias à meia noite com uma lanterna na mão  e  cestos de  uvas selecionadas, pendurados em uma vara apoiada nos ombros, uma pessoa à frente,  outra atrás, lá iam(...)  para vender ao amanhecer nas ruas e quitandas os frutos de seu trabalho. (...) Alguns por necessidade extrema (...) foram obrigados a empregar as filhas, criancinhas ainda, em serviços domésticos na cidade (...). A notícia de que no bairro da Estação (Santo André), no Ipiranguinha, seria instalada uma grande indústria (...) deu alento àquela gente (...). Muitas mocinhas daqui se empregaram por lá, permanecendo a semana hospedadas na casa de famílias ligadas à indústria e passando o fim de semana com suas famílias nas colônias”. (2)     

Attílio passou a infância junto aos pais e mais 9 irmãos,  em uma casa que ficava na atual Rua De Pinedo ( Vila Alcântara – Centro), em um ambiente semi-rural. A crônica “Recordações da Casa Velha” contém diversas descrições desta época: “Lembro da cozinha com fogão a lenha, que denegria as paredes, vez ou outra caiadas de novo. Em manhãs de inverno, pulávamos da cama e corríamos descalços no fundo da pastagem  para ver a geada que cobria a relva de branco, até que os raios de sol surgissem para derretê-la  (...) .   No bosque ao lado, bem à beira do caminho que a contornava, imperava uma velha caneleira. Seu tronco grosso, nodoso e recurvado, no alto se abria em galharias, formando uma majestosa copa, que atraia a passarada chilreando em festa em tempo de frutinhas. (...) lembrava-me nossas emoções e aventuras, armando arapucas para caçar pássaros, ou guiando uma velha carrocinha puxada por um  burro aposentado, que voltava carregada com lenha catada no mato (...).  Bem  no alto, entre as forquilhas das ramarias, esquivos sabiás faziam seus ninhos e, protegidos, cantavam tranquilamente. As copas fechadas impediam a penetração dos raios solares, e o chão úmido, forrado de folhas secas e gravetos em decomposição, ficava forrado com tufos de musgos de variadas cores, formando um espesso e fofo tapete. A mata, com timbre de tantas cores, estendia-se além da linha do horizonte e, mais adiante, descia nos roçados de tantos colonos, situados ao longo da estrada dos Alvarenga.” (3).   

A educação primária – única formalmente recebida por Pessotti ( 4  ), ainda na década de 1920,  no  Grupo Escolar São Bernardo -  também não ficou de fora das observações do autor: “ Seu Maneco de Lima  era o porteiro do grupo (...). Era a autoridade máxima temida pelos peraltas que, quando iam praticar alguma travessura,  procuravam se certificar de sua conveniente distância (...). Seu Vitorino Silva, português baixinho e de óculos, cuja família toda vivia trabalhando e estudando no estabelecimento, entre outra atribuições, era encarregado de assinalar os horários de aula com uma sineta de cabo curto de madeira, que ele agitava na mão como um chocalho, ressoando alegremente pelos corredores (...). Dona Aurora Machado, moça ainda, atendia mais na seção feminina, separada da masculina pelo muro. Aquele recreio dava para os fundos da cadeia pública, cujo posto policial, anexo ao grupo, ocupava a esquina do prédio. Vez ou outra, espalhava-se entre a garotada  o boato de que havia um preso na cadeia, o que causava uma sensação de medo e curiosidade de espiá-los pelas grades, nos fundos. O preso, entretanto, não passava de pobre criatura que teria tomado um trago a mais na véspera e logo seria libertado.” (5).

Inúmeras cenas do cotidiano urbano da primeira metade do século XX, muito inusitado para quem passa pela Rua Marechal Deodoro dos dias de hoje,  aparecem por todo o livro, como acontece no relato sobre o trem/bonde instalado pelos irmãos Hipólito e Ernesto Pujol: “... nosso lendário e pitoresco trenzinho que subia a  Marechal Deodoro, ainda sem calçamento, expelindo fumaça pela chaminé da locomotiva, com dois vagões atrelados - um para chaminé e outro para carga -  desenvolvendo uma velocidade máxima de uns 20km/h. Foi substituído por um bondinho movido a óleo, que malogrou junto com sua empresa, sendo os trilhos arrancados quando do calçamento da Marechal Deodoro, em 1931.” (6).

Attílio Pessoti foi marceneiro. Trabalhou na indústria moveleira na juventude e mais tarde – a partir de 1951 -  foi sócio de uma fábrica familiar no mesmo ramo.  Esta fase de sua vida também aparece  em “Vila de S. Bernardo” ,  juntamente com outras lembranças de sua juventude, relacionadas ao lazer encontrado no cinema, no footing  da rua Marechal Deodoro e no futebol. Porém, o tema  da indústria é um daqueles  em que  Pessotti melhor  revela sua faceta de pesquisador, fugindo do puro memorialismo e trazendo muitas informações obtidas  em  fontes documentais escritas e orais, acrescentado conhecimento original em um tema da história municipal que ainda era  pouquíssimo explorado. O artigos “São Bernardo, Vila – Estação”  e a “A participação Alemã”, também possuem este mesmo viés.    Durante a década de 1970, Attílio foi um dos colaboradores da Sala São Bernardo da Biblioteca Municipal Monteiro Lobato – embrião do atual Centro de Memória de São Bernardo do Campo, procurando antigos moradores para doação e identificação de fotografias e outros itens relacionados à historia regional, as quais até hoje compõe uma parte importante do acervo da instituição.

No ano de  2007, quatorze anos após o falecimento de Attílio, foi publicada uma nova edição de “Vila de São Bernardo”, revisita e ampliada pelo autor em seus últimos anos de vida. Estando disponível para consulta e empréstimo no Centro de Memória de São Bernardo do Campo, o livro até hoje faz parte da bibliografia básica sobre a história do  município , sendo citado em inúmeros trabalhos acerca do tema.   

 

Attílio Pessotti visita antigas casas da família Vertamatti, na  Rua Silva Jardim, nas proximidades de esquina com a Rua José Bonifácio.  Agosto de 1978.  Desde a década de 70 a administração pública municipal tem realizado levantamentos fotográficos nos espaços urbanos mais antigos da cidade, com o objetivo de realizar  a identificação, pesquisa e registro do patrimônio histórico e cultural municipal, bem como para o eventual planejamento de ações de preservação do mesmo. Attílio Pessotti foi o principal orientador e um dos colaboradores deste trabalho, figurando em diversas fotografias à frente de imóveis por ele identificados e referenciados. 

 

Notas

(1) -   Os temas  abordados por Pessotti são muito variados. Os títulos dos capítulos de seu livro dão uma idéia de sua amplitude: “Os imigrantes Italianos”, “Recordações da Casa Velha”, “O Bairro da minha infância”, “Nos tempos do Saci”, “Portão do Tiro”, “O Atalho”, “Rua Marechal através dos tempos”, “São Bernardo, 1925”, “Os Automóveis”, “Os Aeroplanos”, “As Primeiras Fábricas”, “O Grupo Escolar”, “A Antiga Matriz”, “Natal de Outrora”, “A Procissão dos Carroceiros “, “As rezas”, “A Passagem na Fogueira”, “Os Funerarais”, “O Cemitério”, “As Rodovias”, “Os Grandes Restaurantes”, “ A Raia”, “As Maratonas “, “O Carnaval”, Os “Batateiros de São Bernardo”, “O Esporte, uma Bandeira de Glórias”,   “Fuebol Saudade”, “Recordando o Futebol Varzeano (A Excursão)” , “A vila a noite, anos 40”,m “São Bernardo, 1944), “30 anos depois” “São Bernardo – Vila –Estação”, “Reminiscências da Política, ”, “A Participação Alemã”, “Ítalo Setti, ,líder da Antiga Vila”. 
(2) – Cf. Pessotti, Attílio. Vila de São Bernardo. São Bernardo do Campo: Secretaria de Educação e Cultura, 2007. p.20-23.
(3)  – Cf. Ibidem, p.31-34.
(4) – Cf. Pessotti, Dionízio. Depoimento. Banco de História Oral do Centro de Memória de SBC. 24/5/2011. Irmão caçula de Attílio, Dionízio também escreveu um interessante livro de memórias, intitulado “Histórias de São Bernardo” (São Pauo: Scoertecci, 2010).  
(5)  -  Cf. Ibidem, p.89-91.
(6)  -  Cf. Ibidem, p.190.

 

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