Durante os 30 anos que se seguiram ao descobrimento do Brasil, diversos aventureiros, náufragos e degredados chegaram ao litoral paulista, conduzidos por naus portuguesas com objetivos comerciais, militares e exploratórios. Entre  eles estavam figuras poderosas e ao mesmo tempo misteriosas, como o chamado Bacharel de Cananéia - cuja identidade não é conhecida com certeza até os dias de hoje - e João Ramalho, de quem se ignora as circunstâncias de chegada ao país e a origem de seu poder entre os índios tupiniquins. Visitada pela primeira vez  e batizada, em 1502, por Américo Vespúcio (1), a localidade de São Vicente se tornaria, no decorrer dos anos seguintes, um ponto de aglomeração dos portugueses no litoral paulista. O navegador Diego Garcia, que esteve em São  Vicente em 1526, registrou a liderança da comunidade local pelo Bacharel de Cananéia, a presença dos índios tupis - aliados dos portugueses - e a venda de 800  escravos indígenas – que o próprio Diego contratara com o Bacharel. Em 1530, segundo o relato do viajante e cosmógrafo Alonso de Santa Cruz, a localidade contava com “dez ou doze casas (...), e uma  torre de defesa”, além de criações de galinhas, porcos e horticultura (2). Em 1532, São Vicente  se transformaria no primeiro município brasileiro, por ocasião da chegada ao local da expedição colonizadora do Capitão  Martim Afonso de Souza, o qual, no mesmo ano, encontrou João Ramalho, língua da terra, vivendo há cerca de 20 anos na região, com  Bartira - filha de um  poderoso chefe tupi chamado Tibiriçá - e muitos filhos. 

Em  9 de setembro de 1542,  os vereadores  de  São Vicente emitiram um termo de providência para o agrupamento de todos os lusitanos da capitania naquela vila, “que por razão desta povoação ser melhor povoada, e enobrecida, ou em ela haver sempre gente; que nenhuma força das que ora aqui estão na vila, se leve fora dela, e todas as outras, que são fora da dita vila,  as tragam para ela, e assim a de João Ramalho, que está no campo, por fim que todas as forças sejam aqui juntas”  (3). A menção a Ramalho informa que o mesmo já era o líder de um povoado no campo, isto é no planalto. Ramalho, até onde se sabe, não cumpriu a ordem. A existência de um povoado planaltino, habitado por portugueses, já havia sido mencionada, em 1532, no Diário de Navegação, de Pero Lopes de Souza,  irmão do célebre colonizador. O documento informava que  Martin Afonso,  “fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove léguas dentro pelo sertão, à borda d'hum rio, que se chama Piratininga, e repartiu a gente nestas duas Vilas” (4). Apesar desta referência documental, tudo indica que este núcleo não chegou a ser formalizado naquele momento, não existindo  informações seguras  sobre  sua localização, sua  duração ou sobre quem o habitou após 1532. Em 1550, a existência de núcleos portugueses serra acima é novamente mencionada pelo padre jesuíta Leonardo Nunes, que os reuniu em torno de uma pequena igreja no local onde, alguns anos  depois, seria oficializada a Vila de Santo André da Borda do Campo.  Este sítio se encontrava em um ponto desconhecido da atual região do  Grande ABC, com maior probabilidade de estar  na Vila Euclides, em São Bernardo do Campo , ou nas proximidades da Vila Luzita, em Santo André. Em uma carta  direcionada à Companhia de Jesus, Nunes escreveu: “ Aqui me disseram que no Campo (...) entre os índios, estava alguma gente cristã derramada, e se passa o ano sem ouvir missa, sem se confessar, e andavam em uma vida de selvagens (...) enfim consegui com eles que se ajuntassem todos em um lugar e construíssem uma ermida” (5).

Não se pode compreender a existências destes pólos - o do litoral  e o do planalto, localizado  entre as atuais cidades de São Bernardo, Santo André e São Paulo - sem considerar a presença dos índios Tupis na região. Esta etnia indígena se originou na região norte do Brasil e chegou ao sudeste poucos séculos antes dos europeus, tendo, em grande medida, substituído antigos povos da etnia jê em várias partes do atual Estado de São Paulo, incluindo a região metropolitana e o litoral (6). Os tupis praticavam a agricultura (além de caça, pesca e coleta de frutos), viviam em aldeias de cerca de 500 moradores, nas quais permaneciam por um período entre 3 e 4 anos e depois se mudavam para outro local,  buscando sempre lugares altos, muito próximos a rios e bem ventilados. Moravam em grandes casas que abrigavam entre 50 e 80 pessoas (7). Segundo o historiador John Monteiro, eram característicos dos povos tupis,  “o processo de fragmentação e reconstituição dos grupos locais, os papeis de liderança  desempenhados pelos chefes e xamãs, e finalmente, a importância fundamental do complexo guerreiro “(8). De fato, entre os tupis, a guerra intertribal era um elemento da cultura e da identidade dos índios, que  ocorria com frequência,   era ligada à memória social e ao desejo de vingança, e tinha como consequência a captura de prisioneiros, que depois seriam executados em ritual antropofágico. A cooperação  entre tribos estabelecia-se através de relações de parentesco, alianças militares e festejos em comum (9). Os primeiros portugueses instalados em no Estado de São Paulo se introduziram na rede  de alianças tupis, sobretudo através de casamentos com mulheres indígenas, como no caso de João Ramalho. A principal tribo Tupi de São Paulo era a do Cacique Tibiriça, localizada  na área central da atual cidade de São Paulo. Também eram importantes as aldeias dos irmãos de Tibiriça, Caiubi ( atual bairro de  Santo Amaro)  e Piquerobi ( atual bairro de São Miguel Paulista). Chamados tupiniquins, os tupis paulistanos foram  aliados dos europeus e inimigos de tupis de outras regiões e de índios de  outras etnias. Tiveram um papel  fundamental para a segurança, para os empreendimentos  e o estabelecimento das primeiras povoações portuguesas. 

Até por volta de 1560, a tráfico de escravos indígenas estabelecido no litoral e no planalto   funcionava graças à  interferência dos  portugueses no sistema de guerras e alianças dos Tupis, fazendo com que os inimigos vencidos e destinados ao sacrifício  fossem desviados para o comércio de cativos (10). Documentos da época  testemunham a  relação de João Ramalho, seus filhos,  e a população de Santo André da Borda do Campo com os índios.  “Toda a sua vida e a dos seus filhos é conforme a dos índios. (...) Vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios”, escreveu o jesuíta Manoel da  Nóbrega,  em Junho de 1553 (11).  Segundo o relato de viajante Ulrich Schmidel, datando da mesma época  “Estes índios  estão (...)  sob o poder de João Ramalho, que era muito obedecido (...) armava guerras e juntava em um dia 5000 índios” (12). Embora nenhuma fonte que seja conhecida atualmente e produzida durante a vida de Ramalho afirme que os prisioneiros feitos por ele durante suas guerras fossem destinados à escravidão, a maioria dos cronistas e historiadores posteriores, começando pelo jesuíta Simão de Vasconcelos ( século XVII), entendeu  que este era  o caso. De fato, as circunstâncias sugerem que Ramalho e seus aliados tupiniquins eram a principal  força  militar existente no planalto,  que faziam guerra conforme o costume tupi, e que, possivelmente, eram o meio pelo qual os índios inimigos eram escravizados e comercializados. Os ataques dos índios inimigos constituíram um dos motivos pelos quais a Vila de Santo André da Borda do Campo foi dissolvida em 1560. Em 1562, a própria aliança entre os caciques tupiniquins aliados de Ramalho já estava quebrada, Neste ano uma grande  rede de tribos tupis - a chamada Confederação dos Tamoios - liderada por Piquerobi e seu filho Jaguaranho, atacou duramente a nascente Vila de São Paulo de Piratininga, defendida vitoriosamente  por  Tibiriçá e Ramalho. 
Nos anos seguintes, os tupis  da região metropolitana acabariam por se miscigenar completamente à população portuguesa ou morrer vítimas das devastadoras epidemias que freqüentemente acometiam os ameríndios em contato com os portugueses. A escravidão indígena no Estado de São Paulo, mesmo  proibida pela Igreja, continuou existindo por muitos anos, envolvendo cativos descidos do interior do país, mas sem ter relação com a cultura guerreira tupi, como acontecera  outrora. 

 

  
“Cacique Tibiriçá e Neto”, pintura de autoria de José Wasth  Rodrigues. Acervo do Museu Paulista da USP

 



Notas:

(1) - Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Historia Geral da Civilização Brasileira. Vol.2. A Época Colonial.p.89  

(2) - Cf. Taunay, Affonso de E. João Ramalho e Santo André da Borda do Campo. Publicação Comemorativa do Quarto Centenário da Fundação de Santo André da Borda do Campo. São Paulo, 1968.  ps. 28 e 29.

(3) - Cf. Madre de Deus,  Frei Gaspar da,  Memórias para a História da Capitania de São Vicente. Edições do Senado Federal - vol. 129. Brasília, Senado Federal, 2010. ps. 101,102. 

(4) - Cf. Souza, Pero Lopes de. Diário da Navegação da Armada que foi à terra do Brasil sob a Capitania Mor de Martim Afonso de Souza. p.58.

(5) - Cf. Santos, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista (1550-1892). São Bernardo do Campo, PMSBC, 1992. p.43

(6) - Cf. - Prezia, Benedito Antônio Genofre. Os Tupi de Piratininga: acolhida, resistência e colaboração. Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo.1990.p.28.;  -  Villagran, Ximena S. . O que sabemos dos grupos construtores de sambaquis? Breve revisão da arqueologia da costa sudeste do Brasil, dos primeiros sambaquis até a chegada    da cerâmica Jê. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia , v. 23, p. 146, 2013.

(7) - Cf. Prezia, Benedito Antônio Genofre. Op. Cit . ps. 42 e 43.

(8) - Cf. Monteiro, John Manuel. Negros da terra - índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Cia. das Letras, 1994. p. 19.

(9) - Cf. Ibidem. p. 26-27.

(10) - Cf. Ibidem. p. 29.

(11) - Cf.  Carta de Manoel da Nóbrega ao padre Luís Gonçalves da Câmara. São Vicente. 15/06/1553. Serafim Leite. Novas Cartas Jesuíticas (De Nóbrega a Vieira). p.46.

(12) - Cf. Schmidl, Ulderico. Viage al Rio dela Plata y Paraguay. Buenos Ayres, Imprensa do Estado, 1836. Capítulo 52. p.57. Acessível no sítio eletrônico da Biblioteca Nacional, no acervo digital de obras raras.

 

 

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