O ramo da família Miele que emigrou para São Bernardo em 1888 tem sua origem na pequena comuna de Salzano, na região do Vêneto, no norte da Itália (1). Fixaram-se em propriedades na Rua Dr. Fláquer, na região do atual Jd. São Luís e na Rua Marechal Deodoro, na altura do atual número 693, onde Angelo Miele se estabeleceu como carpinteiro e marceneiro entre 1890 e 1910 (2)(3). O trabalho com a madeira marcou a trajetória de vários membros da família, de modo que, além de Ângelo e seu irmão mais novo, o também italiano Antonio Emanuele, vários membros da primeira geração nascida no Brasil, se envolveram com o setor (4).

Francisco Miele, nascido em São Bernardo, em 1900, trabalhou junto com o pai, Antonio Emanuele – conhecido como Manoel - na fábrica de móveis de João Basso (5). Em 1918, Manoel fundou uma fábrica de móveis nas proximidades da esquina da Rua Progresso (atual Rua Djalma Dutra) com a Rua Marechal Deodoro (6). Por volta do iníci de 1920, a empresa encerrou suas atividades, devido a uma grave crise financeira, tendo o imóvel que lhe servia de sede e seus equipamentos penhorados (7). Contudo, no decorrer do mesmo ano o empreendimento ressurgiu sob a firma de “F. Miele, Luz & Ballotim” (8), a qual foi alterada em 1922, ficando apenas Francisco Miele e seu cunhado, Domingos Ballotim, como sócios. A família Ballotim também possui uma ligação antiga com a economia madeireira. Pietro Ballotim, pai de Domingos, havia sido dono de uma serraria hidráulica na região do Rio Grande e do Rio Capivary, entre 1892 e 1899 (9). Depois de sua morte, em 1900, João Basso, esposo de Camila Ballotim, filha de Pedro, assumiu a serraria e a reformou, nela instalando um motor movido à vapor. Por volta de 1905, o empreendimento daria origem à uma segunda serraria, localizada no centro da cidade, e, em 1910, à fábrica de móveis de Basso, a pioneira do município, localizada na Rua Marechal Deodoro, nas proximidades do cruzamento com a atual Av. Rotary.

Em 1923, Atílio Miele, filho de Angelo e também marceneiro, se associou a Ballotim e a Francisco na propriedade da fábrica de móveis da esquina da Rua Progresso, que ostentava então a denominação oficial de Marcenaria Sul- Americana (10). O início da empresa foi modesto, de modo que a fábrica empregava apenas 9 operários em 1925 (11) e 11 em 1929, quando possuía um capital de 45 contos de réis e uma força motriz instalada de 42 HP, alimentada por eletricidade (12). Em 1930, pela primeira vez, a fábrica aparece no livro da Estatística Industrial do Estado de São Paulo como produtora especializada em móveis de escritório, ramo no qual se tornaria conhecida desde então e no qual era uma das poucas indústrias em atividade no estado (13).

Em 1934 - ano em que Domingos Ballotim se retirou da sociedade para abrir uma fábrica de saltos (14) – a empresa havia quase que dobrado o número de funcionários em relação à 1929, atingindo o total de 21 trabalhadores. Por volta desta época, fabricava móveis de escritório – como mesas e arquivos -em série, atendendo aos governos estadual e municipal. Algum tempo depois entraram também na sociedade Salvador, Carlos e Antônio, todos irmãos de Francisco (15).

Entre 1938 e 1945, a empresa dos Miele construiu novo prédio na Rua Tenente Sales e para lá transferiu suas instalações. A empresa continuava crescendo aceleradamente, contando já com 56 funcionários nesta época (16). Uma lista de empregados da firma, publicada no diário oficial, em agosto de 1945, é um dos raros documentos a trazer os nomes dos trabalhadores da indústria moveleira. Constam da relação: 20 indivíduos pertencentes à famílias de origem italiana instaladas em São Bernardo ainda no século XIX - Vitório Médice Filho, Giseuppe Vertamatti, Hugo Cremonesi, Atílio Scopel, José Genari, Domingos Marotti, Mário Marotti, Rinaldo Stangorlini, Alcides Medici, Pedro Morassi, Vitório Antonio Rech, Salvador F. Marotti, Jacob Medici, Cesário Zaparolli, Antonio Máximo Scopel, Armando Demarchi, Américo Storti, Bernardo Zambaldi Amadeu Pedro Oneda, Domingos Medici; Mario Kruziski e Olindo Prugner, de famílias russa e alemã, ambas também instaladas na região no final do século XIX; José , Carlos e Antônio Capassi, Ítalo Lazzuri e Jacob Zampieri, também de família italianas, mas instaladas pouco depois, entre 1900 e 1913; Belmiro Martins, João de Deus, Augusto José dos Santos, Verdomario Domingues Sebastião Maria, Nascimento Francisco Vasconcellos, Francisco M. De Paula, Geraldo de Souza, José da Luz ,Mario S. Botelho, Geraldo Gomes Neto, Eduardo S. Bueno, Alfredo Jorge Miguel, José Francisco Vasconcellos, Orlando Sodra, Antonio Cossia e José Wenceslau da Silveira, totalizando 20 pessoas, provavelmente de famílias brasileiras ou portuguesas, sendo a maioria de migração relativamente mais recente para o município; Por fim, Gulherme Barotti , Claudio e Pedro Rossi, José Zoratti, Rubens Furchinetti, Fioravante Guarnieri e Leonel Guarnieri, Antenor Manarin, Arduino Attilio, de famílias italianas, em sua maioria, mas chegadas em épocas mais recentes que as demais (17). Esta lista de trabalhadores de 1945 possivelmente reflete, em certa medida, a realidade do município na época, onde ainda era muito forte a presença das mais antigas famílias italianas, mas também se já fazia sentir uma grande presença de migrantes recentes, de várias origens, que chegavam para trabalhar na construção da Via Anchieta (1939-1947) ou na crescente indústria moveleira.

Uma nova mudança de endereço aconteceu por volta do início da década de 70, quando a fábrica deixou a Rua Tenente Sales e se instalou na Rua Newton Monteiro de Andrade, na Vila Duzzi (18). Neste espaço a empresa chegou a empregar mais de 90 funcionários em 1981, pouco antes de sua extinção, ocorrida ainda na primeira metade da década de 1980.

 

Acima -> Fachada da Marcenaria Sul Americana – Miele & Miele, em 1936. Publicada no Álbum de São Bernardo, de João Netto Caldeira, em 1937 ( p. 16.). Abaixo –> Anúncio publicitário da empresa publicado no Jornal Nossa Voz (SP), no dia 18 de agosto de 1949 (p.8). Na época a fábrica tinha a denominação de Fábrica de Móveis S. Carlos.

 

 

Notas

(1) - Cf. Gomes, Fábio. Origem das Famílias de São Bernardo do Campo – Famílias Tradicionais e Ilustres. Volume 2. São Paulo, EDICON, 2005. p.279.

(2) - Cf. Livro de Matrícula dos Colonos – Núcleo Colonial de São Bernardo/Sede. Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo -1877/1892. Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo

(3) - Cf. Intendência de São Bernardo, Impostos Municipais 1890-1892. Acervo: Museu de Santo André Otaviano Gaiarsa ; Cf. Livros dos registros dos impostos sobre indústrias e profissões do Município de São Bernardo. 1893-1899; Livros dos registros dos impostos sobre indústrias e profissões do Município de São Bernardo. 1911-1923 ; Livro de Arrecadação do Imposto Predial do exercício de 1892 a 1899. Número 1. Acervo: Museu de Santo André Otaviano Gaiarsa

(4) - Cf. Gomes, Fábio. Idem. 280-290.

(5) - Cf. Miele, Francisco. Depoimento escrito. 18/3/1977. Caderno Biografias (F a J).

(6) - Cf. Livros dos registros dos impostos sobre indústrias e profissões do Município de São Bernardo. 1911-1923. p.58 e 63.

(7) - Cf. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 29 de fevereiro de 1920. p.1350. Acervo: Site Imprensa Oficial. O documento informa que a fábrica funcionava em um barracão no fundo do imóvel penhorado e aponta, entre seus equipamentos, um motor à vapor de 10 HP, serra circular, serra de fita, tupia, tornos, e uma máquina de fabricar pés de cadeira.

(8) - Cf. Caldeira, João Netto. Album de São Bernardo.São Paulo: Organizações Cruzeiro do Sul, 1937. p. 16. Provavelmente, o sócio indicado como “Luz” na denominação da empresa é Manoel Baptista da Luz, proprietário de uma serraria na região do Rio Grande entre 1890 e 1917, e que, segundo um registro de memória familiar colhido por Neide Miele, teria trazido uma grande máquina de desdobrar madeira para a fábrica, a qual permaneceu em sua sede por várias décadas,

(9) - Cf. Intendência de São Bernardo, Impostos Municipais 1890-1892. Acervo: Museu de Santo André Otaviano Gaiarsa ; Cf. Livros dos registros dos impostos sobre indústrias e profissões do Município de São Bernardo. 1893-1899.

(10) - Cf. Caldeira, João Netto. Idem.

(11) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Imposto de Indústria e Profissão. 1924 – 1931. p. 6. Acervo: Museu de Santo André Otaviano Gaiarsa.

(12) - Cf. Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo.Diretoria de Estatística, Indústria e Comércio. Seção das Indústrias. Estatística Industrial do Estado de São Paulo - Ano de 1929. Sâo Paulo: Tipografia Garraux, 1930. p.113. Acervo: Biblioteca Digital do Seade

(13) - Cf. Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo.Diretoria de Estatística, Indústria e Comércio. Seção das Indústrias. Estatística Industrial do Estado de São Paulo – Ano de 1930. Sâo Paulo: Tipografia Garraux, 1931. p.63. Acervo: Biblioteca Digital do Seade

(14) - Cf. Caldeira, João Netto. Idem. Em depoimento concedido ao Centro de Memória de São Bernardo do Campo, em 15/10/2013, a neta de Domingos, Flora Ballotim, relatou interessantes memórias familiares sobre esta empresa - denominada “Fábrica de Saltos S. Bernardo” : “Esse salto que a gente chama Anabela hoje, meu avô foi redesenhando até chegar nele... ele era muito ligado em revistas, no que se usava na Europa, e aqui eu não sei se o Anabela ele adaptou ou ele criou mesmo. Quando casou uma das filhas de Getúlio Vargas, a Ivete, ele mandou de presente, da fábrica, um par de anabelas (...) para ela depois fazer o sapato do jeito que ela queria. Ele sempre foi muito criativo. A fábrica vendia para o país inteiro. Chegou ser a maior da América do Sul”

(15) - Cf. Gomes, Fábio. Idem.p. 285.

(16) - Cf. Departamento Estadual de Estatística. Divisão de Estatísticas da Produção e Comércio. Estado de São Paulo. Catálogo das Indústrias do Estado de São Paulo (Exclusive o Município da Capital) . 1945. São Paulo, Tipografia Brasil - Rothschild Loureiro & Cia. Ltda., 1947. p. 912. Acervo: Biblioteca Digital do Seade

(17) - Cf. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 8 de agosto de 1945. Caderno Executivo. p.36. Acervo: Site Imprensa Oficial

(18) - Cf. Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo. Secretaria de Planejamento e Economia. Unidade de Estatística. Relação de Indústrias no Município -1973.

 

 

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