Em novembro de 1837, o pastor metodista Daniel Parish Kidder foi enviado pela Sociedade Bíblica Americana ao Brasil, em viagem missionária com o objetivo de divulgar a leitura da bíblia, através da distribuição de cópias do livro (1). Kidder deixaria registrado em livros (2) as memórias de sua passagem pelos lugares que visitou no Brasil.

Entre todos estes locais, estava o território de São Bernardo - onde ele chegou num dia de janeiro de 1839, após pernoitar na cidade de Santos, vindo do Rio de Janeiro. Ele e outros nove viajantes, de diversas nacionalidades, subiram a serra pela histórica Calçada do Lorena, montados em cavalos e mulas que haviam alugado em Santos, guiados por dois tropeiros que faziam à frente o percurso.
Ao alcançar o topo da serra , adentraram o território são-bernardense, viajando pelo caminho do mar sob torrencial chuva. Chamou a atenção de Kidder o solo às vezes arenoso e às vezes avermelhado do planalto e o aspecto geral local lhe fez lembrar de alguma forma os bosques de carvalho do oeste americano (3). Alcançaram abrigo na humilde moradia de um casal de origem ou ascendência africana, que oferecia serviços aos viajantes da estrada. Ali os animais foram alimentados com milho e alguns dos viajantes comeram ovos. Após a passagem da chuva, eles seguiram até um rústico rancho com teto de sapé que se localizava na altura do Rio Pequeno (atual Km 35 da rodovia Caminho do Mar), onde resolveram ficar para a passar a noite. Devido à falta de espaço para todos, Kidder e um companheiro preferiram procurar outro pouso no enlameado caminho. Depois de sofrerem uma recusa de " um homem barbudo de aspecto selvagem”, dono uma estalagem na altura do Rio Grande, acabaram sendo recebidos no domicílio de uma mulher na paragem do Ponto Alto (área englobando parte dos atuais bairros do Montanhão e Botujuru e do Jardim Silvina), onde dormiram num pequeno rancho ao lado da casa principal, junto de uma ninhada de cachorros da família.

No dia seguinte, chegaram na hora do almoço na região central são-bernardense, onde no local onde hoje é a Praça Lauro Gomes foram recepcionados no casarão do fazendeiro de chá e café Alferes Francisco Martins Bonilha (identificado no texto de Kidder como senhor B). Figura mais poderosa da freguesia na época e proprietário de dezenas de escravos, Bonilha costumava receber viajantes em sua residência, que funcionava por vezes como uma hospedaria. Bonilha cedeu mulas e indicou-lhes um certo Joaquim Antonio (descrito pelo pastor como um homem negro, grande conhecedor das estradas) como guia para o restante do itinerário em terras paulista do norte-americano, que, em troca, deu a ele um exemplar em portugues da Biblia.

Kidder então seguiria para São Paulo pelo restante da estrada, caracterizada como um simples trilho de terra batida, aprazível e levemente ondulado. Passou por rota que nos dias de hoje compõem as ruas Marechal Deodoro e as avenidas Redenção, Caminho do Mar, e Dr. Rudge Ramos, adentrando a região do Ipiranga em São Paulo. Notou que o caminho, apesar de ainda impróprio para carruagens e diligências, era muito frequentado por tropeiros, que passavam com grupos de cem a trezentas mulas cada um, carregadas com jacás cheios de açúcar e outros produtos. O uso intenso da rota demandava reparo frequente, tendo ele mesmo encontrado uma turma de conservação formada por alguns alemães recém-chegados ao país e também por indígenas e pardos.

Depois de passar alguns dias no interior e na Capital - onde, na assembleia legislativa, ofereceu exemplares do novo testamento para uso nas escolas paulistas, Kidder passou de novo por São Bernardo em seu caminho de volta a Santos. Encontrou no caminho a Sra. Escolástica Jacinta, esposa do Alferes Bonilha, montada em uma mula e trajando um largo chapéu do Chile e um “linda pelica guarnecida de tufos”. Comunicativa e hábil cavaleira, ela os acompanhou até o casarão do esposo, que os esperava, no início da noite. No casarão, Kidder teve a oportunidade de conversar com Antônio Pedro de Alencastro, ex-governador do Mato Grosso e também hóspede de Bonilha na ocasião.

No dia seguinte, ele seguiria seu destino até Santos, dias depois pegando um vapor para o Rio de Janeiro. Prosseguindo na sua missão evangélica, Kidder visitaria nos meses seguintes diversas províncias,até alcançar o Pará. Em 1840, a morte prematura de sua jovem esposa Cynthia Harriet, que estava vivendo no Rio de Janeiro com os filhos do casal durante a viagem do marido, fez o pastor encerrar sua missão e retornar à sua terra natal (4).

 


Acima o Pastor Daniel Kidder; ao centro o Casarão do Alferes Bonilha onde Kidder se hospedou (foto de 1952) ; abaixo, o Caminho do Mar, no topo da serra, extremo sul de São Bernardo -1930.
 

 


Notas:
(1) - Almeida, V. e Souza Gomes, J.N. Daniel Parish Kidder: sociedade, identidade e cultura nas narrativas de um protestante viajante no séc. XIX in: Plura - Revistas de Estudos da Religião. V.7. N. 2. 2016.
(2) - Kidder, D. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil, volumes 1 e 2 (1845) e O Brasil e os Brasileiros(1865, com J.C. Fletcher).
(3) - Souza Ribeiro, M. F. Rastros e Rostos do Protestantismo Brasileiro: Uma historiografia de mulheres metodistas. Tese de Doutorado - Universidade Metodista de S. Paulo. 2008.
(4) - Costa, E.B. da.Conhecer para ensinar: as narrativas de Daniel Parish Kidder sobre o Brasil sob a perspectiva da educação cristã. Tese (Doutorado em Educação). UMESP -- São Bernardo do Campo, 2021.

 

 

Pesquisa, texto e acervo: Centro de Memória de São Bernardo

Alameda Glória, 197, Centro

Telefone: 4125-5577

E-mail: memoria.cultura@saobernardo.sp.gov.br

 

Veja esta e outras histórias da cidade no portal da Cultura:

https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/cultura/tbt-da-cultura