Contos Adaptados Para a Nossa Língua II

Como Surgiu a Noite

Num tempo já esquecido, o dia não tinha fim. O Sol ficava o tempo todo iluminando a floresta. Os índios eram obrigados a dormir no claro. Estavam cansados disso e desejavam um pouco de  escuridão para conseguirem dormir melhor, mas o Sol não deixava de iluminar o eterno dia.
Foi quando um velho, que veio de muito longe, contou que tinha visto um monstro que guardava dois grandes potes. Os potes eram pretos e estavam cheios de escuridão. Os índios imaginaram que a noite tão desejada poderia estar trancada nesses potes. E resolveram ir pegar a noite.
No dia seguinte, um grupo saiu para ir ao local indicado pelo velho. Andaram bastante até que viram o mostro dormindo ao lado dos potes. Quando se aproximaram, escutaram o barulho que vinha de dentro daquelas vasilhas: o som das corujas, dos macacos noturnos, dos grilos, das rãs e dos sapos do brejo e de todos os seres que vivem na noite. O grupo de índios, usando arco e flechas, conseguiram quebrar o pote menor. De dentro daquela vasilha, saiu a noite com todos os seu
bichos. Os índios saíram correndo. Chegaram nas ocas e aproveitaram a escuridão para dormir um pouco. Mas a noite que saiu do pote pequeno não durou muito. Era curta. Não dava para descansar quase nada. Os índios resolveram voltar e quebrar o pote maior. Dois índios foram incumbidos de realizar a tarefa, pois eram grandes arqueiros. Os dois jovens convidaram o Urutau para acompanhá-los. Mas aconselharam ao pássaro que corresse bem depressa porque essa noite era maior e podia pegá-los de jeito. Os três chegaram ao local onde o monstro ainda dormia e com a habilidade dos arcos quebraram o pote maior. Saiu de lá uma noite que não tinha mais fim. Os três fugiram em disparada. Mas Urutau tropeçou num cipó e caiu. Foi logo alcançado pela imensa
escuridão. Por isso, até hoje, o Urutau é uma ave noturna. 
E foi assim que surgiu a noite.

 

Como Apareceram as Redes de Dormir

Antigamente não existiam redes de dormir. Homens e mulheres dormiam no chão por cima das folhas ou pendurados em árvores, como os macacos. Um pajé chamado Tamaquaré, ia se casar e não queria mais dormir no chão como os homens. Tinha medo de que os animais o machucassem.
Também não queria dormir no alto das árvores porque tinha medo de cair de lá com sua mulher.
Ele resolveu então falar com o compadre tucano para ver se ele arrumava uma solução.
O tucano nessa época tinha o bico curto e falava pelos cotovelos.
Tamaquaré encontrou o compadre e pediu:
 - Compadre tucano, vou me casar e não quero mais dormir no chão, nem pendurado como um macaco. O senhor pode me ajudar a resolver esse problema?
O tucano pensou muito, até que teve uma ideia: pegou um monte de cipós e começou a trançar. Depois de trançar bastante, aquilo ficou bonito de dar gosto de olhar. O tucano amarrou o trançado entre duas árvores e chamou o pajé. Tamaquaré ficou satisfeito, mas disse ao tucano:
 - Compadre, gostei muito do seu trabalho! Mas não quero que ninguém saiba como eu consegui esse trançado. Você entendeu? Não conte para ninguém se não eu vou me zangar com você!
O tucano ficou quieto por um tempo.
No dia do casamento de Tamaquaré houve uma festança danada. O tucano estava animado e orgulhoso. Comeu e bebeu tudo que podia. No meio da festança o tucano disse bem alto:
 - Meu compadre se casou! E ele não vai dormir no chão como os outros! Vai dormir na rede que eu fiz! Vai dormir bem confortável!
Disse o que disse e mostrou a rede. Toda a tribo ficou encantada com aquilo. Mas Tamaquaré se aborreceu. Cuspiu no chão com raiva. Pegou o tucano pelo bico e começou a puxar. Puxou com força e ainda disse:
 - Agora, compadre, você vai ficar com esse bico comprido para deixar de ser linguarudo. Não vai mais falar e ainda vai voar curto para aprender!
Desde esse tempo os homens passaram a usar redes para dormir. E o tucano ficou com aquele bicão, falando um “nhé-nhé-nhé” e voando pequeno.

 

Como o Céu Se Afastou da Terra

Num tempo muito antigo, o céu ficava tão perto da Terra que os índios e os bichos andavam no meio das nuvens e das estrelas. Os curumins brincavam no algodão das nuvens e os namorados trocavam juras de amor ao lado da Lua.
Estava todo mundo satisfeito com esse céu tão perto da Terra.
Menos os passarinhos. Eles queriam voar livremente, subir muito alto e, do jeito que estava, só podiam dar vôos curtos. Fizeram uma reunião para resolver o problema. O morcego também foi convidado. 
No dia da reunião, os passarinhos estavam em festa. Veio pássaro de todos os lados e de tudo que é tipo: juriti, urubu, sabiá, papagaio e muito mais. A discussão estava animada até que veio do papagaio a ideia:
 - Porque a gente não se junta e levanta o céu?
 Houve um espanto pela proposta e um grande silêncio se formou. Logo em seguida os pássaros começaram a gritar festejando a proposta. Só o morcego não gostou:
 - Não quero participar disso. Vou continuar a dormir de cabeça para baixo.
 No dia marcado, todos os pássaros se reuniram e, num esforço conjunto, começaram a empurrar o céu para cima. E o azul celeste foi subindo, foi subindo. Junto com ele as nuvens, o sol, a lua, as
estrelas e todos os corpos celestes. O céu ficou tão alto que ninguém conseguia pegar no Sol e nem brincar com as estrelas. Podiam subir na mais alta árvore e no pico da maior montanha que não alcançavam mais o céu.
Os pássaros em festa voavam em todas as direções. Os homens é que não gostaram muito. Eles apreciavam ter os corpos celestes por perto.
Ficaram mesmo zangados. E é por isso que, até hoje, homens e pássaros não se dão muito bem.
E o morcego?
O morcego continua a dormir pendurado pelos pés, de cabeça para baixo.

Como Surgiram os Homens

Existem várias lendas entre os índios sobre como os homens surgiram na Terra. Uma delas é esta:
A selva era deserta.
Nem uma aldeia, nem uma rede pendurada, nem uma fogueira, nem uma cabana, nem famílias, nem roçado. O dia nascia, mas só iluminava o vazio. Só dava luz à solidão. Os pássaros voavam e só pousavam nos galhos das árvores. Nem um telhado, nem uma palha trançada. Os peixes
nadavam nos rios sem uma canoa como companhia. Até que surgiu o primeiro dos homens. Era jovem e belo e corria livre pela mata. Era amigo das matas e dos animais. Caçava só para comer,
nadava com os peixes do rio, dormia com os macacos, sonhava com os pássaros. Tinha tudo para ser feliz. Mas o índio começou a ficar triste. Sentia-se sozinho. Via que os animais tinham companheiros e ele vivia numa grande solidão. Ele queria ter uma companheira e seres iguais a ele para conversar.
Um dia, o rapaz foi conversar com sua amiga onça e contou sua tristeza:
 - Queria tanto uma companheira. Queria muito correr, conversar e brincar com outros parecidos comigo.
 A onça ouviu em silencio o lamento do amigo. Pensou bastante e resolveu contar o segredo de como o índio poderia ter seus companheiros. A onça disse com cuidado nos ouvidos do nosso herói o grande segredo. O segredo da criação dos homens.
O índio ficou feliz com a descoberta e logo começou a trabalhar como a onça ensinou. Foi até a mata e cortou árvores fazendo grossas toras. Pegou um grande pilão e socou as toras nele. Depois passou pimenta, fincou as toras num descampado e esperou a noite chegar. Quando
anoiteceu, fez uma fogueira ao redor de cada uma das toras. Mas nada aconteceu. Ninguém apareceu. E nosso herói chorou muito. Mesmo assim ele não desistiu. Talvez tivesse errado no tipo de árvore que cortou. Voltou para a floresta e cortou toras de outra árvore. E fez tudo como na primeira vez: socou as toras no pilão, passou pimenta e as fincou todas no descampado. Quando anoiteceu, acendeu uma fogueira em volta de cada tora. Novamente, a madeira não se
transformou em gente. E o herói mais uma vez chorou. Foi um choro tão sofrido, tão grande, que o coitado adormeceu ali mesmo. No meio do descampado, as toras continuavam fincadas no chão.
Quando o Sol foi nascendo devagar e acertando seus raios em cada uma das toras, elas se transformaram. Uma a uma foram virando gente. Com o calor do Sol, os índios despertaram e viveram. Eram tão belos e jovens que todos os animais fizeram uma festa para homenageá-los. E nosso herói viu com alegria o surgimento dos índios. Ele trocou olhares com uma bela índia e os dois se apaixonaram. Logo toda a terra estava povoada.
E até hoje, no Alto Xingu, os índios dançam comemorando esse dia.

Lenda da Criação do Mundo

Os índios viviam dentro do furo das pedras. No princípio dos tempos, eles não conheciam a Terra. Viviam dentro das rochas. Eram felizes e tinham vida eterna. Eles só morriam quando ficavam cansados de viver. Um dia, eles decidiram que era hora de sair e conhecer o mundo. Foram
todos saindo dos furos. Só um deles não conseguiu sair porque estava gordinho.
Na Terra, era uma escuridão sem fim. Os índios corriam para todos os lados conhecendo o mundo. Comeram frutas que eles não conheciam. Até que um dia, ficaram com pena daquele que ficou nas pedras e levaram as frutas mais saborosas para ele e um galho seco. Ao ver o
galho, o índio da pedra falou:
- Esse lugar que vocês andam não é bom. As coisas envelhecem e morrem. Não quero ir para esse lugar onde tudo envelhece. Vou ficar por aqui mesmo. E vocês deviam fazer o mesmo!
Mas os outros não deram atenção para as palavras do índio e continuaram a conhecer a Terra.
Um jovem rapaz, junto com sua amada, andava procurando alimento. Como tudo estava escuro, a índia feriu as mãos em espinhos quando tentava colher frutas. O rapaz, naquela escuridão danada, comeu mandioca brava. Sentindo muitas dores, ele deitou e parecia que estava morto.
Vários urubus começaram a voar em volta do rapaz achando que ele tinha morrido. Até que um deles disse:
- Eu acho que ele não está morto. Ainda está se mexendo...
 Mas outro urubu falou:
- Está se mexendo nada! Ele está é bem morto!
Começou uma confusão danada. Uns achavam que o rapaz estava morto e outros diziam que não.
Para acabar com essa dúvida foi chamado o urubu-rei, que era o mais sábio de todos. O grande pássaro de bico vermelho veio voando, flanando pelo céu, se aproximou e começou a observar o rapaz. Até que declarou:
- Este rapaz está morto!
E pousou na barriga do índio. Mas o rapaz, que só fingia que estava morto, agarrou com força as pernas do urubu. O pássaro de bico vermelho esperneou, debateu-se, mas não conseguiu se libertar. E o rapaz mandou:
 - Quero o mais belo dos enfeites!
 E o urubu-rei trouxe as estrelas no céu que piscavam sem parar. Os enfeites eram belos, mas o mundo continuava escuro. E o rapaz pediu mais:
- Quero outro enfeite!
O urubu-rei trouxe a Lua com sua luz prateada. Mas a Terra continuava escura. E o rapaz pediu ainda mais:
- Ainda está tudo escuro! Quero outro enfeite! Quero um enfeite mais brilhante!
 Então o urubu-rei trouxe o Sol, que encheu de luz e calor toda a floresta.
O rapaz ficou satisfeito e a grande ave ensinou ao índio qual era a utilidade de cada uma das coisas.
Feliz da vida, o rapaz libertou o sábio pássaro.
O urubu-rei já voava alto e só então o índio lembrou-se de perguntar qual o segredo da juventude eterna. Lá do alto, a ave disse o segredo. Mas voava tão alto, que quase ninguém ouviu o segredo. Só quem ouviu foram as árvores e os animais. E por não ter ouvido o segredo, até hoje todos os homens envelhecem e morrem.


Para conhecer outras lendas indígenas, sugerimos a leitura de Contos
Indígenas Brasileiros, do escritor Daniel Munduruku.

 

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