Já no século XIII, Tomás de Aquino apontava a íntima relação da memória humana com as coisas que podem ser vistas: “As ideias (...) facilmente  fogem da alma, a menos que estejam ligadas a qualquer símbolo corpóreo, porque o conhecimento humano é mais forte em relação aos entes sensíveis. Por esta razão, o poder mnemônico reside na parte sensitiva da alma", escreveu o célebre filósofo medieval (1). De fato, ao longo da história,  a medida em que a cultura humana foi expandindo e  aumentando a durabilidade dos meios de registro e simbolização  visual, o alcance e a riqueza da  memória coletiva  aumentaram formidavelmente.

Desde a antiguidade, monumentos, estelas,  templos e outras construções   representam o passado em pedra e madeira  fornecendo referências culturais  que permanecem por séculos e até milênios, como  acontece com as pirâmides de Gizé. Na cidade de Roma, ainda que de forma pontual e irregular, desde o século XV,  existiram  ações governamentais  que intencionalmente buscaram preservar edificações urbanas devido a seu valor  como  suportes da memória (2). Pouco depois, o mesmo passou a acontecer na França. Durante a Idade Moderna,  a preservação foi mais efetiva e sistemática na Inglaterra, onde foi defendida por  sociedades de antiquários (3). Nos dois últimos séculos, em um período no qual   as grandes  transformações políticas, culturais, econômicas e demográficas relacionadas ao advento do mundo moderno ameaçavam de uma maneira nunca antes vista estes suportes da memória urbana, políticas preservacionistas  cada vez mais abrangentes, sofisticadas e efetivas foram sendo assumidas por governos de diversos países - a partir de 1938, incluindo o Brasil, através da criação do Serviço de  Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - e finalmente fixadas em tratados internacionais.

Em São Bernardo do Campo, a lei municipal 2610, de 5 de junho 1984, estabeleceu que “constitui Patrimônio Histórico e Cultural do município, o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes em seu território e que, por sua vinculação a fatos pretéritos memoráveis (...) seja de interesse público proteger” .Essa lei serviu de base para os primeiros tombamentos realizados na cidade, a partir de 1987, iniciando assim a atuação efetiva do poder  público municipal na proteção às construções que funcionam como suportes da memória urbana.  No primeiro lote de bens tombados através de diversos decretos datados de 16 de janeiro de 1987,  estavam: capelas  Nossa Senhora da Boa Viagem, Santa Filomena – ambas edificadas no final do século XIX - Santo Antônio (década de 1930) e São Bartolomeu (1959); Igrejas Santa Maria (1953) e Presbiteriana (1944);  os casarões do prefeito e líder autonomista Wallace Simonsen ( Chácara Silvestre) e do comissário do café, ambos da década de 1930; a sede da Câmara Municipal do antigo município de São Bernardo, construída no final do século XIX. Esta lista original já estava criada em abril de 1984. Além dos  imóveis relacionados, havia um outro - uma casa antiga situada  na Rua Américo Brasiliense - que constava do lista, mas que acabou sendo demolido pouco antes da promulgação da pioneira lei 2610/84 (5).  Nas décadas seguintes, vários outros bens foram tombados, sendo que hoje o município conta com  33 imóveis protegidos.

Muitas referências visuais  da memória local desapareceram antes que surgissem ações de proteção no município. As mais importantes foram: a Capela São Bernardo,  que se situava na fazenda homônima dos monges beneditinos e que emprestou sua denominação para a Freguesia (1812) e depois para o município (1890). Construída no começo do século XVIII, sobreviveu  pelo menos até o terceiro quartel do século XIX; o casarão do Alferes Bonilha, construído em meados do século XIX, demolido na década de 1950, foi o primeiro sobrado, sede de vários serviços municipais, incluindo o grupo escolar “Vila de São Bernardo”; antigo prédio da Igreja Matriz, edificado por volta de 1825, foi demolido em 1947 para dar lugar ao atual templo.

Os dois últimos imóveis citados foram registrados fotograficamente e desde os anos 1970 tem sido divulgados em publicações, exposições e mais recentemente em redes sociais digitais. Na verdade, há muitos séculos as  imagens bidimensionais tem servido como referências e meios de registro da memória visual. Inicialmente com desenhos, pinturas e mosaicos, e, desde  meados do século XIX, com fotografias. Na cidade de São Paulo, em 1887, o fotógrafo Militão Augusto de Azevedo publicou um álbum comparando vistas urbanas recentes com as de  décadas passadas,  fazendo um dos primeiros usos diretos da fotografia como suporte da memória visual na região.  Nas décadas seguintes, no Estado de São Paulo e em  diversos municípios, surgiram vários álbuns fotográficos, também  registrando  vistas comparativas ou apenas paisagens  urbanas contemporâneas. Mais tarde,  as imagens destes álbuns iriam ajudar a compor a memória visual destes locais, recebendo um novo uso em novas publicações e em exposições, sobretudo quando,  a partir da década de 1970, o tema da memória urbana seria revalorizado no país (6).  No caso de São Bernardo, por exemplo, o álbum lançado por João Netto Caldeira em 1936 (7), trazendo dezenas da vistas da região central da cidade,  tem servido, desde o final dos anos 70,  como manancial fotográfico para diversas exposições realizadas  pela “Sala São Bernardo”, atual Centro de Memória de S.B.C., órgão que desde esta época tem feito extenso uso de imagens - provenientes de diversas fontes -  na divulgação do passado municipal.   

Mais recentemente, com o advento da internet e das redes sociais, o papel das fotografias na divulgação da memória tem se multiplicado.  Acervos fotográficos de diversas origens - desde os já citados álbuns até a produção administrativa, jornalística e social - tem circulado em diversas comunidades de redes sociais, gozando de uma publicidade que provavelmente nunca conheceram na época de sua criação, fazendo do meio digital o suporte privilegiado para a divulgação da memória na atualidade.

 

Antigo edifício da  Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Boa Viagem. São Bernado do Campo.  Década de 1930.

Original publicado no livro Álbum de São Bernardo, de  João Caldeira Netto.


Notas:

(1) - Suma  Teológica. Secunda Secundae. Questão 49. Artigo 1.   

(2) - Choay, Françoise. Alegorias do Patrimônio. Lisboa: Edições 70, 2000. p.52 - 59 

(3) - Ibidem. p. 76 - 77; 88; 121. 

(4) - Ibidem. p. 134 - 138;  p.224.

(5) - Medici, Ademir. São Bernardo, seus Bairros, sua Gente. 2ª edição. São Bernardo do Campo: Secretaria de Educação Cultura e Esportes, 1984. p. 19-20.   

(6) - MENDES, Ricardo. São Paulo e suas imagens. Cadernos de fotografia brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles, n. 2, p. 381-487, 2004.

(7) - Cf. Caldeira, João Netto. Álbum de São Bernardo. São Paulo: Organizações Cruzeiro do Sul, 1937.

 

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