Entre a segunda metade da década de 80 e os anos 90, quando a população de São Bernardo do Campo já ultrapassara a marca dos 500 mil habitantes e a Rua Marechal Deodoro exibia características muito semelhantes às da atualidade, existia uma propriedade, quase na esquina da Travessa Marechal, que conservava traços de um outro mundo. Em primeiro lugar, o espaço conservava uma das últimas residências térreas de uma Marechal Deodoro já dominada pelo setor de comércio e serviços. Havia também um quintal que remetia aos subúrbios rurais de outros tempos ou outros lugares, muito diferentes da área mais central de São Bernardo desta época, à qual era já era barulhenta, com intenso trânsito de automóveis e quase toda coberta de concreto. Nele haviam hortas, árvores frutíferas, ervas medicinais e dois poços, do qual o dono da casa tirava água com manivela (1) . No interior da residência o cenário também evocava tempos passados: uma janela antiga, uma porta que trancava com tramelas, um grande aparelho de rádio, panelas antigas e um forno de barro, alimentado com lenha (2). Era a residência de Joaquim Mariano Ribeiro, um descendente de algumas das mais antigas famílias brasileiras da região, nascido em 30 de dezembro de 1914, na casa ao lado, precisamente na esquina sul da Rua Marechal Deodoro com a travessa Marechal, que também pertencera a seu pai.

Até o início da década de 1880, não havia nenhuma residência na margem leste do trecho da então chamada Estrada do Vergueiro, entre a região do atual Paço Municipal e a Capela Santa Filomena, onde, mais tarde, seriam construídos os imóveis citados (3). A área pertencia então à família do Capitão João José de Oliveira, Na década de 1890, surgem algumas poucas casas, de proprietários italianos, como Francisco Bocalette, que era também dono de um grande terreno, que ficava atrás destes imóveis, abrangendo quase todo trecho em questão. Uma planta, datada de 1902, mostra o traçado da Travessa Marechal, com casas ocupando suas duas esquinas (4). O imóvel da esquina sul, onde Joaquim Mariano Ribeiro nasceria, doze anos depois, pertencia então à Francisco Antônio de Oliveira Caridade (5). A casa na qual Joaquim passaria a maior parte da vida e em que ainda morava nas décadas de 1980 e 1990, foi construída em 1927 , por seu pai, Francisco Mariano Ribeiro.

Trineto de Miguel Alves Vianna, um dos grandes fazendeiros de toda região em princípios do século XIX e proprietário de terras em Santo André e no bairro Baeta Neves, Joaquim pouco herdou de seus antepassados, e teve uma vida modesta, trabalhando como operário por muitos anos. Solteiro, não deixou herdeiros, e vivou como filho único, uma vez que seu irmão mais velho faleceu com apenas dois meses de idade. Após o falecimento dos país, ficou sozinho na antiga residência, que, embora tenha sofrido várias alterações – a parte da frente, por exemplo, esteve alugada para um despachante entre as décadas de 80 e 90 – ainda conservava, na parte dos fundos e no quintal, características das primeiras décadas do século XX.

Em um depoimento concedido em 1986, Joaquim Mariano Ribeiro relatou diversas memórias da sua juventude: “Eu tive na mina vida um único emprego, que foi a tecelagem. Trabalhei para o Pery Ronchetti. A fábrica quem construiu foi o Narciso Pelosini junto com o Nascimento, dono do terreno da Nova Petrópolis. Nesta época teve um tremor de terra aqui em São Bernardo, que até rachou a fábrica. Era alta, rachou as paredes, aí derrubaram e fizeram a fábrica baixinha. Foi onde o Pery, depois, comprou do Narciso Pelosini. Trabalhei 15 anos nesta fábrica. Trabalhei na calandra, fui tecelão, e depois passei a ser contramestre. Depois trabalhei em uma fábrica de guarda-chuva, aqui em frante, do Sr. Nicolau. Trabalhava meio dia para ele. Durante muito tempo” (6).

Joaquim estudou no primeiro Grupo Escolar de São Bernardo do Campo, que ficava onde hoje é a Praça Lauro Gomos, na década de 1920, na mesma época em que a área era o ponto final do trajeto de um pequeno trem, instalado pelos irmãos Pujol, que ligava São Bernardo e Santo André: “ Cheguei a ver quando colocaram os trilhos do trenzinho. Os professores naquela época vinham de trem ou de bonde. Tinha um bonde à gasolina. Passava em frente ao Grupo Escolar e fazia a volta. O Pujol tinha comprado o sítio do Miranda, nele fez o loteamento do Nova Petrópolis e puxou um ramal para cá. O trem era um vaporzinho com dois vagões. Passava de hora e hora. Tiraram ele por causa do progresso, A preferência do povo sempre foi pelo mais moderno. (...) . Agora é uma época mais triste do que era naquele tempo . A rua, quando era de noite, principalmente na época do calor, todos saiam para fora, sentavam, conversavam, e até as crianças com aquelas brincadeiras, com aquela alegria. Brincavam de roda, cantavam” (7).

Joaquim era músico, e na década de 80 ainda se apresentava regularmente na Associação dos Funcionários Públicos de São Bernardo do Campo: “ Músico, na época, é como se diz ‘na terra de cego, quem tem um olho é rei’. Mas músico eu não sou nem agora. Na época em que eu fiz o meu conjunto eu tocava sanfoninha e bandolim. Eu sabia tocar quase todas as músicas de carnaval, O nome do conjunto era Banda Alvorada, no começo, e depois passou a ser O Sertanejo. Meus colegas eram o João Cardoso Siqueira, no violão, e o José Cardoso Siqueria, no cavaquinho“.

Ciclista, sem automóvel e sem televisão, Joaquim Mariano era apegado aos hábitos e aos modos de sua juventude: “No meu quintal tenho cana, feijão, abacate, laranja e algumas verduras. Plantei milho para fazer pamonha e fubá. Tenho também chá de hortelã , confrei, gengibre, quebra pedra, etc. (...) .Pensam que eu sou miserável e que não compro televisão por não querer gastar o dinheiro. Mas eu não gosto de televisão. Não quero ter mais um pensamento na minha cabeça. Se encrenca qualquer coisa vai um dinheirão. Não me interessa. Na época do rádio, me interessei muito pelo rádio e gosto até hoje“ (9).

 

Joaquim Mariano Ribeiro no interior de sua residência em 1986. Acervo: centro de Memória de São Bernardo do Campo.

 

 

Notas:

(1) - Cf. Medice, Ademir. A residência de Joaquim Mariano. Jornal Diário do Grande ABC, 30/12/1999. cad. 7 cidades. Coluna Memória. p.2.

(2) – Cf. Diversas fotografias do acervo do Centro de Memória de São Bernardo do Campo e datadas de junho de 1986, mostram o quintal e o interior da residência de Mariano Ribeiro.

(3) – Cf. Comissão de Medição de Lotes Coloniais no Município da Capital da Província de São Paulo. Planta de Jurubatuba e parte da de São Bernardo. Engenheiro Leopoldo José da Silva. Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo.

(4) – Cf. Delpy, Luiz. Planta Cadastral da Vila de São Bernardo. São Paulo: Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo.1902. Acervo: Centro de Mem´´oria de São Bernardo do Campo

(5) - Cf. Câmara Municipal de São Bernardo. Imposto Predial (1900-1902).

(6) – Cf. Ribeiro, Joaquim Mariano. Depoimento. 06/1986. Banco de História Oral. Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

(7) – Cf. Idem.

( – Cf. Idem.

(9) – Cf. Idem

 

 

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