Crédito da imagem: Stefano Maglovsky

Quando Noel Rosa escreveu o “Século do Progresso” em 1936 ele observou com argúcia que o revolver, uma invenção de 1836 do estadunidense Samuel Colt, há exatos 100 anos, mudara toda a lógica das desavenças e dos conflitos por amor, por intrigas, por ganância, a força física superada por um mecanismo. Noel associa o revólver ao progresso revelando uma distopia, um olhar melancólico as mudanças do século que tão bem observou como cronista:

 

“Chegou alguém apressado
Naquele samba animado
Que cantando dizia assim:
No século do progresso
O revólver teve ingresso
Pra acabar com a valentia”

 

Não foram poucas as vezes que a música popular revelou de forma direta e simples, o sentimento das pessoas comuns em relação às descobertas cientificas, naquilo que eles impactam em suas vidas e que transforma a percepção das pessoas comuns em relação às descobertas e aos avanços
da ciência, exaltando, estranhando e mesmo repudiando.

No anos de 1902, Muito antes de Noel Rosa associar a arma de fogo às grandes transformações do século XX, o compositor, palhaço de circo e cronista das ruas carioca, Eduardo das Neves, exaltava em versos um dos nossos grandes descobridores e homem da ciências, “A descoberta do
Ar” trazia para o cancioneiro popular o orgulho do brasileiro sobre Santos Dumont, o pai da aviação, no momento em que a nossa indústria fonográfica nascia:


“A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou Parabéns em meigo tom
Brilhou lá no céu mais uma estrela
Apareceu Santos Dumont.”

 

Avançando um pouco, em 1947, a Estação Primeira de Mangueira entrou na avenida ao som de um samba composto por Cartola e Carlos Cachaça chamado “Ciência e Arte”, nele uma homenagem à César Lattes, sim o físico dá nome ao famoso currículo Lattes:


“Quero neste pobre enredo
Reviver glorificando os homens teus
Levá-los ao panteon dos grandes imortais
Pois merecem muito mais
Não querendo levá-los ao cume da altura
Cientistas tu tens e tens cultura
E neste rude poema destes pobres vates
Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes”

 

Um ano depois, em 1948, os compositores Klécius Caldas e Armando Cavalcanti compuseram para o carnaval “A marcha da penicilina”, uma alusão muito precisa à esperança que as pessoas alimentam pela cura integral de suas vidas seja pelas crenças, seja pela ciência, fenômeno muito presente nesses tempos de pandemia que vivemos:


“Ai!
Penicilina cura até defunto!
Ai!
Petróleo bruto faz nascer cabelo!
Mas ainda está pra nascer o doutor
Que cure a dor de cotovelo!”

 

São centenas de exemplos, vamos parar em 1969, em plena Tropicália, o movimento que entre outras coisas, quis flertar e registrar um Brasil em crise entre o desenvolvimento e o autoritarismo, Gilberto Gil, cantor e compositor, aponta para os ganhos e perdas da automação, da cibernética, que tanto acomete nosso cotidiano cinquenta anos depois:


“O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar
Se deus existe, só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Eu falo e ouço”

 

São muitas as referências que associam o cancioneiro ao universo das ciências, o que reafirma o poder da música popular em registrar tudo que nos afeta, as coisas do nosso tempo, a vida em suas cruezas e belezas.

 

Referências:
 

MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. (En) canto científico: temas de ciência em letras da música popular brasileira. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 13, p. 291-307, 2006.

TINHORÃO, José Ramos. Música popular: os sons que vêm da rua. Edições Tinhorão, 1976.

 

Músicas:
 

“Século do Progresso” – Noel Rosa interpretada por Aracy de Almeida:
https://www.youtube.com/watch?v=zcYJfklQqf4

“Canção do Ar” – Composta e Interpretada por Eduardo das Neves
https://www.youtube.com/watch?v=VLpzuc-u6hA

“Ciência e Arte” – Cartola e Carlos Cachaça interpretada por Cartola
https://www.youtube.com/watch?v=El-p0MYSaXk

“Marcha da Penicilina” – de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti interpretada por Linda Batista
https://www.youtube.com/watch?v=rpmu7QqOZDQ

“Cerebro Eletronico” – de Gilberto Gil interpretado por Gilberto

https://www.youtube.com/watch?v=JFAHDYEMHEE

 

Referências de pesquisas e curiosidades

 

Um caminho para trabalhar a divulgação nas ciências é pela arte. Por isso o uso da crônica na composição acima, uma forma de captar a estética do cotidiano. Aqui algumas referências sobre as formas da música expressar descobertas científicas: https://bit.ly/2YTSdJM

Sobre o poder simbólico do revólver Colt e sua inviabilidade econômica e tecnológica no presente, o artigo abaixo é um bom começo: https://bit.ly/2VFnnCI

Santos Dumont, dos grandes cientistas mundiais e como sua invenção também foi apropriada na I Grande Guerra: https://youtu.be/dMRHfuqKDd0  e  https://bit.ly/2Zy6wCS

Cartola e Cesar Lattes: https://bit.ly/2NRUfUm  e   https://bit.ly/2YSZo4Y

Sobre o Currículo Lattes, é uma plataforma em que pesquisadores deixam seus currículos acadêmicos, onde descrevem suas áreas de atuação, linha s de pesquisa. Uma boa fonte para checar informações sobre o autor de determinado trabalho, estudo ou opinião: http://lattes.cnpq.br

Penicilina: https://bit.ly/3dVlXdq

Antes da penicilina, o Rio de Janeiro viveu uma epidemia e uma campanha de vacinação foi o estopim para uma revolta popular em 1904: https://portal.fiocruz.br/noticia/revolta-da-vacina-2

 

 

 

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