No início do séc. XX, a reforma do Caminho o Mar perpetrada por Arthur Rudge Ramos, ao possibilitar o trânsito de automóveis, deu nova a vida à velha rota, que havia sofrido pesada decadência desde a inauguração da estrada de ferro São Paulo Railway entre Santos e Jundiaí, em 1867, que desviou o fluxo de transporte para a ferrovia.
A revitalização da estrada, agora transformada em rodovia para trânsito de automóveis, fez com que fosse reanimada uma rede de comércio e serviços destinada aos que viajavam pela estrada. Nas suas margens surgiram bombas de gasolina para o abastecimento de veículos, botequins e também os chamados “recreios”. Estes eram estabelecimentos comerciais que funcionam como restaurante e/ou bar,e eventualmente possuíam algum espaço de lazer e descanso (como por exemplo uma cancha de bocha, boliche) ou mesmo hospedagem rápida.
Um desses estabelecimentos foi o chamado Recreio Belga, que se situava nas proximidades da confluência do Caminho do Mar com a Estrada do Vergueiro, em área hoje ocupada pelo Jardim do Mar, de frente para a área onde depois surgiria a Indústria Elni, na Av. Redenção. O recreio fazia parte de uma área maior,que englobava um sítio, ocupando ao todo 143 m de frente para o Caminho do Mar e 174 m de fundos para a Estrada do Vergueiro (1). Possuía cerca de mil árvores frutíferas, uma criação de pombos e galinhas. A casa contava com 10 cômodos, 3 varandas, poço, luz elétrica e até mesmo telefone - raros naquele tempo.Tudo pertencia ao casal Joseph Edmond Goossens e Cecile Cauwenbergh, ambos ambos nascidos em Bruxelas, Bélgica, respectivamente em 1887 e 1882 (2). Eles, em 1912, após casarem-se, emigraram para o Brasil, morando inicialmente em São Paulo, onde teriam montado uma chapelaria na Av. São João (3).
Logo em seguida, porém, o casal adquiriu sua propriedade em São Bernardo. Em 1919 Goossens já paga na cidade o impostos pelo estabelecimento de “molhados” no Caminho do Mar, como atesta o Livro do Imposto de Indústrias e Profissões daquele ano (4). Já no ano de 1923, um artigo do jornal A Tribuna, se refere ao Recreio Belga , juntamente com o Restaurante Quaglia, como um dos locais da estrada onde os fiscais responsáveis pelo exame de chauffeurs de praça da Capital costumavam beber. Além do restaurante, o casal também comercializava as galinhas da raça leghorn (e seus ovos) criadas na chácara, chegando a anunciar, com o nome de “Avícola Belga” , na revista Chácara e Quintais entre 1931 e 1933 (6).
O momento de maior notoriedade do Recreio Belga se deu em junho de 1933, quando o local abrigou um almoço secreto entre o general Waldomiro Lima, interventor nomeado por Getúlio Vargas no governo do estado após a derrota dos paulistas na revolução de 1932 e Ataliba Leonel, um dos líderes dessa revolução e membro do Partido Republicano Paulista, contrário a Vargas. O almoço foi visto como gesto de cooptação por parte de Ataliba Leonel, que acabava de voltar do exílio devido à sua participação na Revolução, e causou escândalos no cenário oposicionista paulista, onde o PRP formava com o Partido Democratíco uma frente única contra o ditador (7). Os jornais locais repercutiram por meses o almoço, que contou com 12 pessoas ao total, e chegaram, em função da curiosidade despertada, a entrevistar Cecile e Joseph, para tentar saber de detalhes.”Nada ouvi, pois me conservei o tempo todo na cozinha, enquanto o meu marido, o Edmundo, fazia aos hóspedes as honras da casa. Mas mesmo que eu tivesse ouvido , nada lhes contaria pois não é próprio de gente educada passar adiante o que se ouve em conversas reservadas (8)”, disse Cecile, dias após o evento, ao jornal “A Noite”. Mais de um ano depois, em uma tarde de agosto de 1934, Cecile e Joseph receberam o jornal Correio de São Paulo, ainda repercutindo o fato. Joseph, na ocasião, lamentou: “parece que esse recreio perdeu muito com aquele almoço. Estiveram aqui, é verdade, muitos curiosos para observar a sala e a mesa em que eles comeram, mas quanto a negócio nada(...) Financeiramente foi para nós um desastre aquele almoço. Diminuiu a frequência ao recreio e em nada nos adiantou a fama daquela reunião (9)”.
Mesmo como a alegada escassa freguesia, o recreio funcionou até pelo menos 1938, data de um mapa da região onde o estabelecimento aparece referenciado. E o casal Goossens continuaria morando em sua chácara em São Bernardo até meados dos anos 40: um registro da antiga Delegacia de Fiscalização de Estrangeiros mostra que, em abril de 1946, o casal comunicou ao órgão sua mudança para o Bairro Perdizes, em São Paulo. Pouco tempo depois, na virada da década, iniciava-se nas suas antigas terras em São Bernardo, agora adquiridas por Ciccillo Matarazzo, o loteamento do Jardim do Mar (11). Cecile e Joseph faleceram em São Paulo; ela, em 1965; ele, em 1967 ;mas ambos acabaram sepultados no Cemitério da Vila Euclides, exatamente de frente para a área onde, décadas antes, estava o sítio onde viveram boa parte de suas existências (12).
Fotos do estabelecimento publicadas no jornais A Noite de 29-06-1933 e Correio de S. Paulo de 9-08-1934.
Notas:
(1) - A Tribuna, 14-05-1924
(2) - Registro Civil de Tucuruvi - óbitos n.27758 e n.30166
(3) - Goossens, M. Edmond Goossens. Site Patrimônio Belga no Brasil.
(4) - Livro de Impostos de Indústrias e Profissões -1919. PMSBC
(5) - A Tribuna, 02-08-1923
(6) - Revista Chácara e Quintais, edição 44 - 1931;45- 1932; 48 - 1933.
(7) - Correio de São Paulo, 29-06-1933; Gazeta Popular 13-10-1934
(8) - A Noite, 29-06-1933
(9) - Correio de São Paulo, 09-08-1934
(10) - Registros de Estrangeiros -Registros N. 98699 e 98735
(11) - Diário Oficial do Estado de SP. 90-02-1950
(12) - Registro Civil de Tucuruvi. Idem
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