Nos tempos coloniais e imperiais, a  escravidão africana foi uma dura realidade vivenciada em todas as partes do território brasileiro. Na região de São Bernardo (1), sua presença é documentada entre os  séculos XVIII e XIX, sobretudo através de recenseamentos promovidos pelo governo paulista conhecidos como  listas nominativas. Em  1779, o recenseamento apontava um contingente   de 615 escravos na região, os quais representavam cerca de 36% do total de 1712 habitantes, distribuídos em apenas  201 residências, todas elas localizadas em áreas rurais. Entre estes núcleos residenciais, 94 possuíam ao menos um escravo, dos quais 14 possuíam mais de 9 cativos, e a maioria - 64 núcleos - possuía até 4, contando também mulheres, idosos e crianças. Entre os 377 escravos maiores de 18 anos, cerca de 29% eram casados. 

Infelizmente os nomes dos escravos não foi informado neste documento. Entre os negros,  apenas 13 indivíduos - pertencentes a seis núcleos  diferentes - eram livres. Entre eles estava o casal Manoel de Oliveira (41 anos) e Ana Francisca (17 anos), que vivia junto à idosa Beliana de Souza, possivelmente uma aparentada. Além disso havia 47 pardos livres, sendo que, provavelmente, a maioria deles era afro-descendente e alguns poderiam ser de origem indígena (2).

Em 1798, o total de escravos recenseados foi de 518 (30,22%) em uma população de 1714 habitantes. Entre os cativos, 354 eram negros e 164 eram pardos, também afro-descendentes. Neste ano o levantamento incluiu dados relativos às atividades econômicas desempenhadas pela população. Assim, sabemos que o trabalho escravo era utilizado sobretudo na agricultura – produzindo principalmente farinha de mandioca, milho e feijão -  e na pecuária, mas também se fazia presente em outros setores: algumas residências se dedicavam ao  aluguel de animais, uma atividade típica da região, que fornecia suporte ao crescente número de tropeiros que viajavam pela estrada do mar; havia duas  propriedades direcionadas à fabricação de telhas com mais de dez escravos em  cada uma; uma residência, com vários escravos, tinha a venda de lenha como principal fonte de renda; existiam também duas famílias que viviam do aluguel de seus escravos (3). 

Em 1829, em um dos últimos recenseamentos da série das listas nominativas, a região registrava a presença de  525  pardos, 342 negros e 737 brancos em um contingente total de 1611 indivíduos (4). Mais ou menos por esta época apareceram diversos documentos da resistência à escravidão na região, sobretudo por meio de fugas. Em maio de 1828,  o Jornal Farol Paulistano publicou uma nota informando que  “acha-se em casa do Alferes Francisco Martins Bonilha, morador em São Bernardo, um preto fugido de nação Congo, que ainda não fala português. Terá  idade  de 24 anos, altura pouco mais que ordinária, (...)  tem camisa e ceroula de algodão, coberta branca (...)” (5).  No mesmo ano, meses depois, o mesmo Alferes Bonilha anunciava a fuga de um escravo seu  e oferecia recompensa para quem o aprisionasse (6).  Em 1830,  um conflito  maior pareceu ocorrer nas matas de São Bernardo, quando 20 negros refugiados “opuseram vigorosa resistência, porquanto logo que aproximou-se a escolta a eles encontraram fora do mato com uma descarga de seis tiros” , conforme revelou um documento do governo provincial (7).   

Nas últimas décadas da escravidão no Brasil, o número de escravos na Freguesia de São Bernardo havia diminuído drasticamente, em virtude, sobretudo, da abolição do tráfico  escravagista internacional, do aumento do preço dos escravizados, e da  sua demanda nas ricas regiões cafeeiras do interior da Província de São Paulo. O primeiro recenseamento nacional brasileiro, realizado em 1872, já mostrava uma grande diminuição, apontando um total de 119 cativos em uma população de 2687 habitantes, isto é, 4,43 %. O documento informava  que apenas 10 destes escravos haviam nascido na África, somente 6 eram casados, 90 eram negros e 29 eram pardos.  A  população negra livre era de 138 pessoas e os pardos livres  somavam   688 habitantes ( 8 ).  

Os livros do 1º cartório de São Bernardo também guardam registros da escravidão, trazendo diversas referências  relativas a  alforrias. O  primeiro documento registrado neste estabelecimento, em 21 de dezembro de 1831, foi justamente  uma carta de liberdade, passada por um homem, chamado Salvador Cardoso de Almeida, à uma mulher de 30 anos, chamada Ledubina, “pelos bons serviços que me tem dado (...) e por ter recebido a quantia de seis dobras” (9).  Mais de 50 anos depois, em 31 de outubro de  1884, outro livro do mesmo cartório trazia  um contrato de prestação de serviços firmado  entre uma ex-escrava - chamada Vicência de Toledo - e o Tenente Francisco de Oliveira Salles,  que lhe emprestara dinheiro para a compra de sua alforria.  O contrato fixou em  cinco anos o período da prestação dos serviços, prazo que,  se houver sido rigorosamente cumprido,  estendeu, de forma infeliz,   o tempo de  trabalho relacionado à escravidão  de Vicência  para além da data de sua  abolição oficial  no Brasil, em maio de 1888 (10).     

Na década de 70 do século XX,   ainda subsistiam alguns registros de antigos escravos na  memória oral do município.  O  jornalista Ademir Médici colheu alguns deles.   O ex-escravo Rafael de Souza Pereira, conhecido como Rafael Preto, faleceu na década de 1950, no  bairro Alvarenga, onde morava. Segundo Antonio Bento,  morador da região, Rafael casou-se com 50 anos, após a abolição da escravatura, com uma mulher chamada Maria Rita. Era dono de um moinho de farinha de mandioca e de um terreno, onde plantava verduras. Segundo outro morador da localidade, Mário Médici, Rafael  dizia ” que nos seus tempos de escravo a alimentação era deficiente e ele muitas vezes passava a noite em claro, no meio do mato, em busca de frutas para os seus” (11). O pesquisador Wanderlei dos Santos registrou a existência de Nhá Eva,que teria sido escrava do Alferes Bonilha e teria vivido até as primeiras décadas do século XX. Segundo o autor,  vários antigos moradores recordavam-se de histórias sobre a crueldade do Alferes em relação aos escravos  e Nhá Eva costumava dizer que um dia  Deus o puniria devidamente por suas ações (12). 

Acervo: Os recenseamentos citados se encontram no Arquivo do Estado de São Paulo. Os documentos relativos ao 1º cartório de São Bernardo, hoje se encontram divididos entre o 1º e o 2º tabelionato de notas de São Bernardo do Campo. O jornal Farol Paulistano está disponível para consulta on-line na Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital. Os livros citados nas notas podem ser consultados no Centro de Memória de São Bernardo do Campo. 

 

Tropeiros Pobres de São Paulo, 1823. Não se sabe exatamente que parte do território de São Paulo está retratada nesta pintura, mas mostra o trabalho de tropeiros,  semelhante  ao que alguns escravos realizavam em São Bernardo nesta época, região muito ligada ao tropeirismo em virtude da passagem da Estrada do Mar em seu território.   Jean-Baptiste Debret.  In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.São Paulo: Itaú Cultural, 2023. 

 

 

Notas:

(1) - Nestes documentos, esta   região  -  que pertencia ao território da capital paulista - aparecia sob a designação de “Bairro de São Bernardo e Caguaçu”  

(2) - Cf. Lista nominativa de habitantes de S. Paulo e S. Bernardo - 1779. Acervo: Arquivo do Estado de S. Paulo.

(3) - Cf. Lista nominativa de habitantes de S. Paulo e S. Bernardo - 1798. Acervo: Arquivo do Estado de S. Paulo

(4) - Cf. Lista nominativa de habitantes de S. Paulo e S. Bernardo - 1829. Acervo: Arquivo do Estado de S. Paulo

(5) - Cf. Jornal Farol Paulistano, 17/5/1828.

(6) - Cf. Jornal Farol Paulistano. 15/11/1828.

(7) - Cf. Ofício de 18 de junho de 1830, Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo, Ofícios diversos da Capital, caixa 72, ord.867.   In Martins, José de Souza. A escravidão em São Bernardo na Colônia e no Império. São Paulo:  Centro Ecumênico de Documentação e Informação /Quilombo Regional do ABC/Pastoral do Negro, 1988. 

(8) - Cf. Recenseamento do Brasil em 1872 – São Paulo. Rio de Janeiro: Typ. G. Leuzinger, 1874. p. 22

(9) - Cf. 1º  Livro de Notas do  Escrivão de Paz da Freguesia de São Bernardo. 1831.  p.2. Seis dobras equivaliam a cerca de 80 mil réis. 

(10) - Cf. 7º  Livro de Notas do  Escrivão de Paz da Freguesia de São Bernardo. 1884. p.15. 

(11) - Cf. Medici, Ademir. São Bernardo, Seus Bairros, Sua Gente. São Bernardo do Campo: Secretaria de  Educação, Cultura e Esportes.1984. p.66.

(12) - Cf. Santos, Wanderley dos. Antecedentes Históricos do ABC Paulista:1550-1892. São Bernardo do Campo, PMSBC,  1992. p.236.

 

 

Pesquisa, texto e acervo: Centro de Memória de São Bernardo

Alameda Glória, 197, Centro

Telefone: 4125-5577

E-mail: memoria.cultura@saobernardo.sp.gov.br

 

Veja esta e outras histórias da cidade no portal da Cultura:

https://www.saobernardo.sp.gov.br/web/cultura/tbt-da-cultura