A aquarela ao lado retrata a região central da Freguesia de São Bernardo em 1827 e é o mais antigo registro iconográfico da região. Sua autoria é atribuída a Charles Landseer, membro da comitiva do embaixador inglês Charles Stuart, que, neste ano, passou pelo Caminho do Mar, em viagem a São Paulo (1). Na imagem podemos ver parte do trecho da atual Rua Marechal Deodoro que fica entre a Rua Dr. Fláquer e a Rua Padre Lustosa, o Largo da Matriz – a inauguração da Igreja aconteceu em 1825- e o prosseguimento da via na direção norte. Pertencente ao município de São Paulo e abrangendo o território que hoje corresponde à região do ABC paulista, a freguesia havia sido criada em 1812 e instalada na região do Largo da Matriz em 1814, dando assim início a um diminuto e pioneiro centro urbano, o qual pode ser observado na aquarela. Nesta década de 1820, a agricultura voltada à subsistência e, em menor grau, à comercialização, era a principal atividade econômica da maioria da população, a qual, pode-se estimar que oscilava em torno de 1850 moradores. Milho, mandioca, feijão e arroz, nesta ordem, eram os alimentos que apareciam com maior frequência na produção agrícola dos domicílios da região, cujo número pode ser estimado em algo em torno de 270 unidades (2). Neste universo rural destacam-se- alguns dados: em 1817, as seis maiores fazendas ocupavam mais de 25% de todo o território. Entre elas estavam a fazenda de João Franco da Rocha, a maior de todas, com 65 Km²,que ficava na região de Mauá, e as três fazendas dos monges beneditinos (denominadas Jurubatuba, São Bernardo e São Caetano) (3). Durante a primeira metade do século XIX, outros grandes proprietários na área do atual município de São Bernardo do Campo foram Miguel Alves Viana – cuja memória familiar ficou perpetuada na atual Rua dos Vianas – Francisco Galvão Bueno, e Francisco Martins Bonilha, que em 1828 se tornaria o primeiro Juiz de Paz - máxima autoridade local – eleito na freguesia. O trabalho escravo era amplamente disseminado na região, em especial nas grandes propriedades. Em 1822, 22,4 % da população era escrava. Ainda neste mesmo ano, a população total abrigava uma parcela de 47% de brancos, 20,7 % de negros e 33 % de pardos. Entre os escravos, as proporções eram de 65% de negros e 35% de mulatos. Entre os livres, os números indicavam 60% de brancos, 32% de pardos e 8 % de negros. Uma atividade econômica bastante significativa e característica da região era o aluguel de animais para transporte de mercadorias entre Santos e São Paulo, exercido pelos chamados tropeiros, ofício que se associava ao próspero ciclo econômico da cana de açúcar no interior do estado. Em 1827, as atividades artesanais tradicionais – carpinteiro, ferreiro, oleiro, costureiro, serrador, etc - estavam presentes em 14,6 % dos domicílios. O comércio surgia, no mesmo ano, em apenas 2,6 % dos domicílios (4). Nesta época - como já havia acontecido no passado e voltaria a ocorrer diversas vezes no futuro - a região de São Bernardo foi palco de um episódio importante da história paulista e brasileira. Trata-se da chamada “Bernarda de Francisco Inácio”, uma insurreição levada a cabo por uma facção da elite paulistana contra a autoridade do Príncipe Regente D. Pedro I, a partir de 23 de maio de 1822. O episódio opunha partidários de D. Pedro, liderados por Martin Francisco Ribeiro de Andrada – irmão de José Bonifácio, o Patriarca da Independência – a um grupo liderado pelo Coronal Francisco Inácio de Souza Queiroz e pelo chefe do governo provisório paulista, João Carlos de Oeyn Hausen. Para assegurar seu controle sobre São
Paulo, o príncipe chamou ao Rio de Janeiro este último, deixando Andrada – que era secretário de governo - em seu lugar (5). A ordem foi desobedecida, dando origem ao conflito. Em 19 de julho, tropas militares fiéis ao príncipe, vindas de Santos, estacionaram em São Bernardo e interromperam o trânsito pelo Caminho do Mar, ameaçando a capital paulista. A fim de evitar um conflito armado, uma comissão de negociação foi enviada pelos partidários de Francisco Inácio ao “Ponto Alto”, local de S. Bernardo onde se aquartelaram as tropas, o qual se localiza no atual bairro do Ferrazópolis. No dia 22 de julho, um acordo determinou o retorno das tropas a Santos (6) . Ainda assim, a confusão persistiu na capital, de modo que a presença de D. Pedro foi solicitada. Tendo chegado a São Paulo em 24 de agosto, para resolver definitivamente este conflito, D. Pedro partiu para Santos em 5 de setembro, para visitar a família de José Bonifácio. Na volta, em 7 de setembro, logo após atravessar São Bernardo pelo Caminho do Mar, proclamou a Independência do Brasil, no atual bairro paulista do Ipiranga. Esta última viagem ecoou, muito tempo depois, na memória social do município de São Bernardo do Campo, onde muitas vezes se disse e se escreveu que D. Pedro passou pela rua Marechal Deodoro no dia da Independência e que parou para rezar na Capelinha de Nossa Senhora da Boa Viagem.


Notas:
(1) – Existe uma outra versão desta imagem, produzida no mesmo momento, com autoria atribuída a William Burchell, outro membro da mesma comitiva.
(2) – Cf. Jacobine, Rodolfo Scopel. A Freguesia de São Bernardo: aspectos socioeconômicos da região do ABC Paulista entre o tempo colonial tardio e a alvorada do Império. 2012. 69p. Artigo inédito, arquivado na Biblioteca Nacional e no Centro de Memória de S.B.C. p.12 ep.24-25.
(3) – Cf. Jacobine, Rodolfo Scopel. op. cit. p.29.
(4) – Cf. Jacobine, Rodolfo Scopel. op. cit. p.24.
(5) – Morse, Richard. Formação Histórica de São Paulo – De comunidade à metrópole. Difusão Européia do Livro, São Paulo. 1970. p.76-78.
(6) – Caldeira, João Netto. Álbum de São Bernardo. Organizações Cruzeiro do Sul. 1937.


Pesquisa: Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

Acervo: A imagem foi reproduzida a partir do livro "Iconografia Paulista no Século XIX " , de Pedro Corrêa do Lago. p. 105. A publicação cita apenas uma coleção particular como fonte, sem identificar o proprietário da obra.

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