Produto originário da região dos Andes, onde foi uma das bases do regime alimentar inca, a batata foi levada pelos espanhóis para a Europa no séc. XVI. Lá,  seu consumo se difundiu lentamente, mas também de forma persistente, e já no final no final do séc. XVIII  era um dos principais itens do cardápio de  países como Alemanha, Itália e Inglaterra, especialmente  das classes mais pobres. No Brasil, ela já era largamente conhecida desde o início do período colonial, conforme atestou o cronista Gabriel Soares de Souza em 1587, que menciona diversas variedades de batatas aqui consumidas (1). Viajando pelos arredores de São Paulo em 1808, o inglês John Mawe elogiou as plantações de batatas que viu, embora observe que era mais disseminado por aqui o plantio de batata doce do que da batata comum (muitas vezes chamada de “inglesa” devido ao seu larguíssimo  uso em terras britânicas) (2). A escala de produção brasileira cresceu substancialmente com a onda imigratória européia a partir da 2a. metade do séc.  XIX, muito cultivada que foi pelas colônias alemã e italiana do sul e sudeste do país. 

No núcleo colonial instalado em 1877 em São Bernardo, ocupado majoritariamente por imigrantes italianos, a batata foi um importante item da agricultura familiar nele praticada. Ressalta-se porém que as  estatísticas mostram que ao menos até o início  do século  a produção de batata doce aqui foi muito maior do que a da inglesa. Entre 1893 e 1901 os levantamentos censitários disponíveis mostram que a produção da primeira nas colônias da cidade evoluiu de 151 mil para 317 mil litros  e a da última de 4,5 mil  para 8,5 mil litros (3). Com o tempo, porém essa situação se inverteria: depois de um largo período onde há uma grande lacuna de dados que permitam uma comparação, vemos  no censo  de 1950 (4) que na cidade havia uma safra anual quase 11 vezes maior da batata inglesa, com 58 toneladas, enquanto a produção da doce era de apenas 5 toneladas.

Porém, deve-se ressaltar que a produção em São Bernardo, embora tenha sido regionalmente expressiva, não superava a de outros núcleos coloniais, como o de Sabaúna (Mogi das Cruzes)  e o de  Campos Salles (Cosmópolis) (5). Assim, não foi uma hegemonia estadual na produção que levou os são-bernardenses a receberem no passado  o apelido de  “batateiros”, carregado até hoje, apesar da urbanização e industrialização local.  Segundo o memorialista Attílio Pessotti,  “batateiro” era  um apelido usado  pelos habitantes mais abastados  do centro,  praticamente a única área urbanizada  até a década de 1950, para designar a população rural  mais pobre das linhas coloniais (6). Porém, o termo também foi utilizado pelos moradores de Santo André - que por sua vez até por volta de 1970 era mais urbano e rico que São Bernardo - para designar todos os habitantes da localidade vizinha.  A origem desse uso pelos andreenses estaria relacionada a incidentes com torcedores de futebol  ocorridos entre o fim da década de 1920 e o início da década de 1930. Alguns  apontam o ponto de partida após um um jogo realizado nos anos 20 entre o Corinthians de Santo André e o extinto Associação Atlética S. Bernardo, ocorrido provavelmente no antigo campo que existia onde hoje é o cruzamento da Av. Prestes Maia com a Marechal Deodoro. Nesse dia,  os jogadores andreenses, quando embarcavam de volta  em um dos bondes  da antiga linha (que ligava as duas localidades), teriam sido surpreendidos  com uma saraivada de batatas podres lançada pelos torcedores de São Bernardo. No jogo seguinte, os andreenses teriam revidado, com uma chuva de cebolas podres (7). Outro relato situa estes  conflitos alguns anos depois, em 1933,  durante um torneio envolvendo E. C. São Bernardo e uma Seleção de Santo André (8). De qualquer maneira, é certo que  logo o apelido “batateiro” se tornou de uso corrente: em março de 1939, o Jornal O Imparcial (9), editado em Santo André, já designava dessa forma  um morador são-bernardense que havia mandado à publicação um carta anônima, onde defendia que  o então distrito de  São Bernardo,  por meio do Centro de Cultura  Humberto de Campos, vinha promovendo mais eventos culturais que Santo André (então recém transformado na sede do antigo  município que englobava todo o atual ABC Paulista). O contexto era então de crescente rivalidade política entre as duas localidades, rivalidade que por fim acabaria por levar à emancipação de São Bernardo em 1945.  

Todavia, com o passar dos anos, a carga pejorativa desses apelidos perdeu força, e, mesmo hoje, quando as características agrárias da cidade já se dissiparam quase que completamente e o perfil da população alterou-se de forma radical, muitos moradores de São Bernardo, principalmente  os de famílias com raízes mais antigas no município,  se autodenominam, com certo orgulho, “batateiros”. 

 

Nas imagens vemos acima uma vista da cidade tomada por volta de 1965; abaixo, charge enfocando os conflitos futebolísticos entre” batateiros” e “ceboleiros” publicada no jornal Folha de S. Bernardo, em dezembro de 1979, de autoria de Tessaini.

 

Notas:

1 - Souza, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.

2 - Mawe, John.  Viagem à província do Brasil.

3 - Anuário Estatístico de São Paulo, 1893; 1901.

4 - Censo Nacional, IBGE, 1950.

5 - Anuário Estatístico de São Paulo,  1901.

6 - Pessotti, A. Vila de São Bernardo. 1981. Cadernos Históricos. PMSBC.

7 - Folha de São Bernardo, 01-12-1979; Medici, Ademir. Coluna Memória in Diário do Grande ABC, 07-04-2009; Furlan, R. Santo André x São Bernardo: ao vencedor, as batatas e as cebolas in imaginariosantoandre.wordpress.com; 

8 - São Bernardo em Revista. Setembro de 1981.

9 - “Um Batateiro de Cabelinho na Venta” in: Jornal O Imparcial, 11-03-1939.

 

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