No dia primeiro de outubro de 1911, à uma hora da tarde, na sede da Sociedade de Mútuo Socorro “Italiani Unitti” - atual Rua Marechal Deodoro nº 1415 - aconteceu a assembléia geral para constituição da Companhia Tecelagem de Seda “Vila de São Bernardo”, que, por cerca de três décadas, foi a mais importante fábrica do ramo no território de São Bernardo do Campo, e também uma das maiores empregadoras do setor industrial do município. Os sócios majoritários eram os italianos Ítalo Setti (diretor-presidente em 1912, dono de uma Fábrica de Charutos ) e Antonio Caputo (diretor vice-presidente em 1912, proprietário de uma serraria no Rio Grande), cada um possuidor de 31% das ações da empresa. O industrial moveleiro João Basso e o irmão de Ítalo, o comerciante Pedro Setti, também eram sócios com participações significativas, mantendo, respectivamente 7,5% e 10% das ações. Os 21% restantes estavam distribuídos num rol de quase vinte moradores de São Bernardo, incluídos os donos de pequenas industrias Vicente Colombo ,Francisco Périgo, Antonio Morganti, João Batista de Oliveira Lima e Guilherme Bellinghausen; os comerciantes Luiz Cassetari, Caetano Ritucci, André Delegá, Eugenio Meucci, Huebel Miguel e Jorge Miguel; os lavradores Giovani Arsuffi e Marco Mattei Margarello; além de Samuel Sabatini, Angelo Colombo, Giuseppe Sabatini, Adelelmo Setti - outro irmão de Ítalo, Luis Tulio e Secondo Mondolin (1). Alguns anos depois, Ítalo e seus filhos se tornaram os únicos proprietários da fábrica, cujas instalações - ainda parcialmente existentes - se situavam na antiga Rua da Fábrica - hoje Rua Ítalo Setti.

O bisneto de Ítalo, Vicente D’Angelo, guarda em seu acervo pessoal alguns documentos da empresa, os quais oferecem informações preciosas sobre a vida social do município, especialmente nas décadas de 1930 e 1940. O mais completo deles é uma declaração dos empregados existentes em 25 de abril de 1940, produzida em conformidade com o decreto lei 1843/1939 (2). Além dos nomes completos dos 139 funcionários da empresa, o documento indica suas datas de nascimento, ingresso na empresa e - no caso de estrangeiros - chegada ao Brasil. Informa ainda as funções, tipo e valor dos salários, sexo e estado civil de todos os trabalhadores.

O primeiro dado que aparece ao se percorrer a lista é a grande preponderância das mulheres entre os funcionários, como é tradicional no setor têxtil. Eram 129 mulheres, compondo 93% do corpo de funcionários, com idades que iam de 14 até 42 anos. Entre elas, a esmagadora maioria tinha entre 14 e 29 anos de idade e era solteira. Nestas condições, é certo que quase todas residiam com os pais e ajudavam no orçamento doméstico com seus salários. O percentual de funcionárias menores de idade era de 33%. Aqui vale observar que as constituições brasileiras de 1934 e 1937 foram as primeiras a regulamentar o trabalho de menores, mas o permitiam a partir de 14 anos de idade (3).

Apenas 11 funcionárias eram casadas, as quais totalizavam 73% do pequeno grupo de mulheres com mais de 30 anos de idade. Esta estatística indica a tendência das mulheres para abandonarem o trabalho ao se casarem, fato que era comum - ainda que não obrigatório - na época.

A citada declaração de empregados informa também que haviam 15 cargos ou funções diferentes na empresa. Onze deles eram preenchidos por apenas um ou dois funcionários. Entre estes existiam sobretudo funções técnicas - desenhista, mestre, contra-mestre, mecânico - e administrativas  - guarda-livros, oficial de expediente, almoxarife, auxiliar de almoxarife.Estas funções eram todas exercidas pelos homens - à exceção do caso da oficial de expedição, uma mulher chamada Haydei Tondi - e pagavam os maiores salários, os quais podiam ultrapassar um milhão de réis mensais, como ocorria com o cargo de desenhista - ocupado pelo português Antonio Dias - e o de mestre, preenchido pelo italiano Renzo Amadei, que ingressara na empresa ao 9 anos de idade, trabalhando como ajudante de serviços gerais (4). Os demais cargos eram relativos à produção e eram todos ocupados por mulheres. A função de tecelã era a mais comum - sendo executada por 69 mulheres - e oferecia um salário médio de 191 mil réis, que variava em função da quantidade de tecido produzido por cada trabalhadora. O cargo de espuladeira - ocupado por 14 mulheres - oferecia a menor remuneração mensal – 85 mil réis em média - e variava de acordo com o número de horas trabalhadas. Também eram horistas as operadoras de máquina encanatória - função muito comum, exercida por 23 funcionárias , as urdideiras, as limpadeiras e as torcedeiras.

Como acontecia também em outros âmbitos da vida social e econômica da cidade, a maioria dos funcionários da tecelagem possuía origem italiana. 104 funcionários (78%) tinham sobrenomes de origem italiana e, entre estes, 66 (63%) pertenciam à famílias estabelecidas no núcleo colonial São Bernardo em 1897, algo que também acontecia com a maioria dos acionistas originais da empresa, incluindo Ítalo Setti. Existiam laços familiares entre muitos funcionários da empresa, com vários casos de irmãs, primas e outros parentes trabalhando ao mesmo tempo na empresa.

Cruzando informações deste documento de 1940 com outras fontes relacionadas à história do município podemos conhecer melhor o contexto biográfico de muitos dos trabalhadores da tecelagem. Abaixo seguem alguns exemplos.
As irmãs Teresa e Martina Marçon, eram filhas do carvoeiro Ângelo e netas do colono e agricultor italiano Pedro Marçon. Teresa, com 15 anos, era espuladeira, e Martina, com 18, trabalhava na máquina encanatória. Ambas moravam como os pais, em uma casa alugada na mesma rua da empresa. Militante da Juventude Operária Católica (JOC), Martina se casaria, alguns anos depois, com o operário moveleiro Natal Vertamatti, que nas décadas seguintes seria eleito vereador e presidente da Câmara Municipal (5).
O funcionário mais antigo era o almoxarife italiano Giuseppe Farina, que ingressou em 1913, e , em 1928, colocou sua filha Judith, para trabalhar como tecelã na fábrica. Ambos moravam na Rua Municipal, na região central da cidade (6).

As irmãs Carolina e Domingas Vertamatti, assim como sua sobrinha Carmela trabalhavam como tecelãs. Eram, respectivamente, filhas e sobrinha de Domenico Antonio Vertamatti, italiano, que foi lavrador e proprietário de terras rurais do Núcleo Colonial São Bernardo. Posteriormente, Carmela se tornaria professora de corte e costura no SESI. Os irmãos de Carolina e Domingas formariam a fábrica de móveis São Domingos na década de 1940 (7).

Rosa Feriani, nascida na cidade de Pedreira, em 1920, era tecelã. Ingressou na empresa em 1938, quando provavelmente ainda residia na Rua Municipal, na casa de Luiz Feriani, seu pai, que trabalhava na indústria moveleira local.
Olga Médici, nascida em 1923, trabalhava na máquina encanatória. Ingressou na empresa aos 15 anos de idade, era neta do colono italiano Enrico Médici e filha de Henrique, ambos estabelecidos como agricultores na região do atual Bairro Assunção. Era tia do célebre jornalista e memorialista Ademir Médici (9)

Produzindo tecidos de seda para diversos fins, a Tecelagem Vila de São Bernardo continuou existindo com essa denominação até 1954, ano em que foi absorvida pela Tecelagem AIDA.

 


Acima - Funcionárias da Tecelagem de Seda Vila de São Bernardo. 1931. Abaixo – Prédio que abrigou a Tecelagem Vila de Bernardo.1976.

 


Notas
(1) - Cf. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 14/10/1911. p.3923.
(2) - Cf. Tecelagem de Seda Vila de São Bernardo. Declaração dos empregados existentes em 25 de abril de 1940, produzida em conformidade com o decreto lei 1843/1939
(3) - Em 1936, a tecelagem Vila de São Bernardo ainda observava, ao menos em parte, o Decreto Estadual 2918 (Artigo 211 - 9 de abril de 1918 ) que exigia a apresentação de autorização assinada pelos pais para o trabalho de menores. É o que se pode ver em um documento que cita este decreto, e que foi entregue por Angelo Marson à empresa, para que sua filha de 14 anos pudesse ser admitida (Cf. Rodolfo Cf. Vertamatti, Rodolfo. Imigração em São Bernardo – Família Silvestre. Enciclopédia da Imigração Italiana em São Bernardo - Volume 3.p. 77. )
(4) - Gomes, Fábio Silva. Origem das Famílias de São Bernardo do Campo – Famílias Tradicionais e Ilustres. Volume 3. São Paulo : Edicon, 2005. p.42.
(5) - Cf. Vertamatti, Rodolfo. Imigração em São Bernardo – Família Silvestre. Enciclopédia da Imigração Italiana em São Bernardo - Volume 3.ps.71, 76 e 77.
(6) - Cf. Vertamatti, Rodolfo. Imigração em São Bernardo – Família Silvestre. Enciclopédia da Imigração Italiana em São Bernardo - Volume 3.ps. 100 e 101.
(7) - Cf. Vertamatti, Rodolfo. Imigração em São Bernardo – Família Vertemati. Enciclopédia da Imigração Italiana em São Bernardo - Volume 4. ps. 120 e 121.
(8) - Cf. Gomes, Fábio Silva. Origem das Famílias de São Bernardo do Campo – Famílias Tradicionais e Ilustres. Volume 1. São Paulo : Edicon, 2002. p.120.
(9) - Cf. Livro de Matrícula dos Colonos – Núcleo Colonial de São Bernardo/Sede. Inspetoria Geral de Terras, Colonização, Imigração do Estado de São Paulo. (1877/1892). Acervo: Arquivo do Estado de São Paulo ;
Cf. Gomes, Fábio Silva. Origem das Famílias de São Bernardo do Campo – Famílias Tradicionais e Ilustres. Volume 1. São Paulo : Edicon, 2002. p.171-172.

 

 

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