LGBTQIA + Parte 2:  Uma História LGBTQIA+ antes do movimento LGBTQIA+

“A possibilidade de que essas histórias encontrassem semelhanças com aquelas já conhecidas pelos europeus, tornava a cultura incaica bastante familiar aos leitores europeus de sua época, eliminando o seu estranhamento e diferença perturbadora.” (Oliveira, Susane Rodrigues de. Gênero, Sacralidade e Poder: o Mito das Origens dos Incas na Obra de Garcilaso de la Vega [1586]). (1)

Uma identidade construída a partir da semelhança é algo com que nos acostumamos a entender como o natural da formação e evolução das sociedades humanas; buscar unidade e coesão pelas semelhanças é uma forma de organização, mas será que pode ser considerada a única? A constituição de padrões pode ser capaz de produzir uma sensação de conforto pela familiaridade de hábitos, comportamentos, sentimentos.
  
Para entendermos que o movimento LGBTQIA+ não trata apenas de discutir um tema como uma questão pontual, de identidade entre semelhantes - que viveriam dentro de uma entidade maior, a sociedade -, é preciso recorrer à história de sociedades para as quais a sexualidade não era uma questão, mas a tratavam como parte de sua própria organização social. A diferença como sinônimo de desigualdade.

Entre os cronistas do Império Inca, no século XVI, o Twantinsuyu, muitos descreveram os povos originários da América como sociedades desorganizadas, sem controle, praticantes de antropofagia, sacrifícios humanos e sodomia; ou seja, bárbaras, segundo o referencial da Europa ocidental, cristã, da época. 

Um desses cronistas, talvez o mais famoso, Garcilaso Inca de La Vega, filho mestiço de pais da nobreza espanhola e inca (2), tentou exaltar o Império Inca a partir da busca por assemelhar os incas à moral cristã europeia do século XVII. Ou seja, conforme iniciamos acima, exaltar um povo pela semelhança de ações.

Teriam os incas fundado sua sociedade, seu império, excluindo a diversidade e inferiorizando a diferença? Um outro questionamento se faz necessário: não seria uma narrativa inspirada numa representação já cristã, que atribuiria comportamentos relativos a gênero e sexualidade diferentes ao padrão binário constituído (homens e mulheres) como sendo um índice de inferioridade, de “menos civilizado”?

Uma das formas de explicar o surgimento da sociedade inca remete aos seus primeiros governantes. Manco Cápac e Mama Ocllo (o Inca e a Coya, respectivamente). Na representação deles, é possível perceber que a relação de gênero poderia estar fundada numa relação de igualdade de poderes e atribuições entre o homem e a mulher, rompendo a lógica europeia de que a ação de governar caberia, prioritariamente, aos homens, aos reis. É preciso muito cuidado ao se buscar verdades absolutas em sociedades cujos padrões de registro de suas ações -memória dos acontecimentos -, não estavam ancorados numa escrita tal qual a conhecemos. Afinal, tudo que está escrito ou fotografado é necessariamente “mais verdadeiro”?

Voltamos a falar da palavra escrita como meio de discussão, de comprovação e de nomear ações. Antes de a escrita ser entendida como definidora de práticas, porém, os comportamentos e os sentimentos já existiam, se manifestavam e eram registrados por outras formas. Saímos da América e vamos para a Europa, em sociedades anteriores às de tradição judaico-cristã. Quem assistiu ao filme Troia, com Brad Pitty, numa adaptação da obra de Homero, A Ilíada?

No filme, um dos pontos de virada para a trama é quando Heitor, príncipe troiano, mata Pátroclo por engano, achando que matava o herói grego Ulisses. No roteiro, o jovem Pátroclo é apresentado como primo de Ulisses. Há, contudo, indícios na narrativa de que existiria uma relação de afeto homossexual entre eles. Este indício se sustenta ao lembrarmos de que o amor era um sentimento tido como possível entre iguais - no caso, entre homens -, na Antiguidade. Daí o termo “misoginia”, que excluiria as mulheres, pois as mesmas eram consideradas inferiores. Hoje, sabemos que também não era bem assim, pois as principais sacerdotisas dos famosos oráculos eram mulheres.

Platão, o conhecido filósofo, discípulo de Sócrates, em uma de suas passagens, problematiza sobre a existência de três gêneros humanos:

“A punição divina sobre a Humanidade dividiu todos aqueles que antes eram unos, deixando suas partes incompletas. Ou seja, o que antes formava um todo perfeito, passou a serem partes imperfeitas vagando no mundo. Aristófanes chama a atenção para o fato de que essa é a condição atual dos homens, mas não a sua verdadeira natureza, pois a natureza humana é, originariamente, una. Os humanos sem suas metades passam a morrer de fome ou de outras causas devido à saudade da parte que lhes falta. Para resolver esse problema e apiedando-se dos homens, Zeus dará um sentido para Eros, fazendo do desejo sexual esse resgate das partes separadas (Platão. Banquete, 191 b-c). Será nesse ponto que Aristófanes irá iniciar a sua explicação para a existência de Eros. Ele está a falar de todos os amores humanos possíveis, entendendo que a separação dos gêneros significa justamente isso. Entre aqueles que compunham o masculino, a divisão dará origem a dois homens que gostam de homens; entre os que compunham o feminino dará origem a duas mulheres que gostam de mulheres; e entre os que compunham o andrógino dará origem a um homem que gosta de mulher e uma mulher que gosta de homem. Dessa forma, Aristófanes pretende abarcar o todo das possibilidades amorosas entre os humanos. Eros tem papel fundamental para reunificar os homens e salvá-los da solidão a que foram condenados.”

Interessante, pois estamos falando sobre mirarmos nosso olhar para que a diversidade faça parte da constituição das sociedades humanas e aqui neste trecho, Platão, pela voz de Aristófanes, nos diz que nossa identidade, o que criaria condições de unidade e felicidade entre os seres humanos,está no amor entre iguais. (3)

Falamos de amor. E com Eros voltamos à América para termos no sexo uma forma de organização e de manutenção de sociedades pré-colombianas do México e América Central para além dos fins reprodutivos, tal como nas religiões cristãs. (4) 

Este trânsito transatlântico entre Europa e América ao longos dos séculos teve a intenção de compor um breve mosaico sobre como as relações de gênero e sexualidade são complexas e perpassam a história das mais diversas sociedades e como elas foram tratadas pelas instituições (Estado, Igreja, Universidades). Elas existiram e buscaram reconhecimento e retornaram com força e visibilidade no século XX, sobre o que falaremos no próximo texto. (5)

 

(1) Gênero, Sacralidade e Poder entre os Incas
https://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/view/20120/18529

(2)Sobre Garcilaso inca de la Vega
https://pt.wikipedia.org/wiki/Inca_Garcilaso_de_la_Vega

(3) Sobre gênero e sexualidade em Platão
https://periodicos.uff.br/helade/article/download/28045/16372/96728

(4) Sobre as funções sociais do sexo
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/07/100713_precolombianossexo_ba

(5) Sobre sexualidade entre os séculos XVI, XVII e XVIII na Europa
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000100014

 

 

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