LGBTQIA+ PARTE 3: DE STONE WALL INN À PARADA LGBT NA PAULISTA: RECONHECIMENTO E DIREITO

 

“Art. 3º As pessoas trans e intersexuais que queiram ser chamadas e tratadas exclusivamente pelo nome social poderão solicitar a respectiva inclusão, em campo próprio, de forma manual ou eletrônica, em fichas de cadastro, formulários, prontuários, petições, inscrições em concursos públicos, documentos de tramitação e requerimentos de qualquer natureza, inclusive eletrônicos, perante os órgãos e unidades de atendimento da Administração Direta e Indireta Municipal” (trecho do Decreto Municipal nº 20.653, de 17 de janeiro de 2019, do Município de São Bernardo do Campo).

A Administração Pública de nosso Município reconhece a diversidade de gênero como direito do indivíduo. A biblioteca pública, como instituição municipal, cuja função é a de promover acesso à informação a partir de fontes diversas, exerce seu papel de instituição pública garantidora de direitos humanos - sociais e culturais -, por meio de apresentar e mediar questões de interesse público.

Iniciar nosso diálogo hoje a partir de um decreto e de uma apresentação um tanto quanto formal do papel de instituições públicas parece destoar um pouco da temática que vem sendo abordada ao longo dos dias, não? Quando vemos milhões de pessoas na Avenida Paulista, vindas de todos os cantos do mundo, festejando sob a bandeira do arco-íris, comumente não lembramos que esta festa é também um ato, uma manifestação por reconhecimento de direitos.

Desde a Revolução Francesa no Ocidente que a vida humana, seja ela um ato da criação divina ou uma complexa cadeia de átomos e moléculas, vem sendo reconhecida como um bem a ser preservado e protegido pelo Estado. Antes disso, cabia ao Rei, normalmente homem, o papel de guardar a vida de seus súditos que, em troca, deviam obediência a ele. A Constituição dos Estados Unidos, de 1787, escreve de maneira poética o que deveria ser a vida humana nesta nova forma de organização social: todos deveriam ter o “direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.” Um texto jurídico contemplando a busca pela felicidade como direito, permite-nos entrar em nosso tema por outra porta, ou outra janela, quem sabe.

Nas terras onde hoje conhecemos por Estados Unidos da América, leis contra relacionamentos homossexuais existiram desde 1534, ainda como colônia da Inglaterra. Sabe quando foram abolidas as últimas restrições legais que criminalizavam os relacionamentos homoafetivos naquele país? Definitivamente, por uma decisão da Suprema Corte, apenas em 2003. Até lá, alguns estados ainda previam sanções penais.

Voltamos ao século XVI para ver como leis do século XX podem conservar valores considerados ultrapassados, tal qual a noção de que amor entre pessoas do mesmo sexo seriam valores degenerados perante a Igreja.  O primeiro estado a abolir leis desta natureza em solo norte-americano foi Illinois, em 1962 (1). Ou seja, quase cinco séculos depois das primeiras restrições legais importas. Uma sociedade onde a busca pela felicidade aparece como direito constitucional é a mesma que historicamente levou tempos para abolir sanções criminais. Illinois foi o primeiro Estado, outros demoraram quase dez anos para isso.

Identificar e promover uma ação como um marco histórico é um processo complexo que, quase sempre, pode significar a perda de outros fatos e ações importantes. Mas, alguns são dotados de tanta força e concentram tantas demandas e reivindicações que se tornam marcos históricos quase que imediatamente. Este foi o caso dos protestos que emergiram da revolta no bar Stonewall Inn, no dia 28 de junho de 1969. Um bar abertamente gay numa Nova Iorque que ainda prendia pessoas por serem gays.

Quando tratamos de ações de exclusão às minorias é preciso problematizar variáveis diferentes. A primeira: o que é fazer parte das minorias, mesmo que, em termos quantitativos, não sejam tão minorias assim? Em termos de garantias de direitos, fazer parte de minorias implica em uma fragilidade na questão de acesso a condições para viver, sobretudo no caso das populações mais pobres. Trabalhar, estudar e divertir-se podem ser campos bem restritos em nossa sociabilidade.

Daí, muitas vezes, a prostituição acaba sendo uma consequência dessas restrições e não uma causa para comportamentos entre a população homossexual ou transgênero. Portanto, o comportamento considerado desviante de uma minoria pode ser consequência da ausência de garantias jurídicas e respeito pela diferença.

A mesma coisa na hora de se divertir. Nesta Nova Iorque, existia a proibição de bares à comunidade LGBT e, quando existia, como no caso do Stonewall Inn, ele era proibido de vender bebidas alcoólicas. Numa condição precarizada dessas, os locais clandestinos ganhavam força. Quando não clandestinos, gerenciados, muitas vezes, por organizações criminosas, como no caso do referido bar, cuja propriedade era do mafioso Tony Lauria, ou Fat Tony. Sim, a máfia italiana, muitas vezes romantizada em produções hollywoodianas. 

Voltamos ao dia 28 de junho de 1969, data em que, nas primeiras horas da manhã, iniciou-se uma reação diante de mais uma batida policial feita no bar. Dali de dentro, a reação à violência policial espalhou-se por uma série de motins e manifestações pelos direitos LGBTQIA+ na cidade.

Lembram-se da primeira parte deste histórico? Que comentamos sobre a equidade de poderes entre os governantes homens e mulheres no Império Inca (o texto anterior, a parte 2)? Pois bem, séculos depois é importante destacar que as primeiras reações à truculência policial naquela manhã foram de mulheres:

“É preciso dar visibilidade especial às mulheres que participaram deste processo. Mulheres de várias identidades de gênero, etnias e orientações sexuais que tiveram papéis importantes no estopim do confronto que definiu a luta pelos direitos. Stormé DeLarverie, “a guardiã das lésbicas”, foi a pessoa que primeiro deu um soco num policial durante a batida que deu início à revolta. Marsha P. Johnson, reconhecida hoje como uma mulher trans, também foi uma das drag queens mais conhecidas de Nova Iorque e, após o famoso soco de DeLarverie, foi uma das primeiras que partiu para a briga. Consta que foi Sylvia Rivera, uma travesti bissexual, quem primeiro atirou uma garrafa contra a polícia dentre a multidão que assistia da calçada à ação policial que ocorria no Stonewall Inn.” (4)

Como estamos falando em conquista de direitos, é importante destacarmos atos políticos que reforçam os mesmos. Em 2006, o prédio do Stonewall Inn foi reconhecido como monumento nacional dos Estados Unidos da América. De Nova Iorque para San Francisco - passando por figuras como Harvey Milk, primeiro político assumidamente gay a ocupar um cargo público naquele país -, vamos agora retornar ao nosso país. Como é a luta pelo reconhecimento de direitos LGBTQIA+ no Brasil.

Apesar de o primeiro beijo artístico gay ter sido transmitido em uma novela da TV em 2014 e, no início dos anos 2000, ter sido organizada uma manifestação em frente a um shopping center de São Paulo contra atos de discriminação, a busca por reconhecimento de direitos no Brasil é tão antiga quanto em outros lugares. Aqui, contudo, com a existência de uma governo civil-militar nas décadas de 1960 a 1980, os movimentos LGBTQIA+ enfrentaram resistências bastante conservadoras.

Lembramos que a discriminação produz não apenas exclusão e sofrimento emocional e psicológico, mas também a exclusão econômica, que acaba impondo a prostituição como uma forma de sobreviver. O código penal brasileiro enquadrava as demonstrações homoafetivas ou de transgêneros como atentado violento ao pudor.

De João Francisco dos Santos, a Madame Satã, artista transformista, inspirador de um bar conhecido em São Paulo, a luta pelo reconhecimento dos direitos LGBTQIA+, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, pode ser vista também como atos de resistência ao governo militar? Provavelmente, se não em termos de magnitude como os movimentos operários, mas em força de resistência e longevidade que chega aos dias de hoje. Prova disso é que a parada do Orgulho LGBTQIA+, em São Paulo, é um dos eventos que mais atrai turistas no Brasil, ficando atrás apenas do Carnaval do Rio de Janeiro, gerando a economia da cidade ao longo dos dias que a antecedem.

Ao longo desta série histórica que propusemos nesta semana, a Biblioteca Pública Municipal de São Bernardo do Campo teve como objetivo garantir seu direito ao acesso a uma informação produzida a partir de pesquisas em fontes confiáveis.

Nesta perspectiva, construir a narrativa exigiu mirar sobre alguns aspectos e deixar outros fatos para outros momentos. Esperamos, contudo, ter chegado até aqui cumprindo a proposta de colocar em evidência ações, vozes e movimentos muitas vezes silenciados porque considerados diferentes de um padrão normativo estabelecido. A questão é preservar o espaço de fala e de reconhecimento dos direitos à vida, à liberdade e a busca da felicidade. Semana que vem tem mais.
Obrigado.

 

(1) Decreto de reconhecimento do uso do nome social
https://www.saobernardo.sp.gov.br/documents/10181/865801/NM+2041+de+18.01.2019+-+Conteu%CC%81do+Integral.pdf/87167ad9-7e25-7187-2e3f-72e817e0ae50

(2) Relação de estados com as datas que aboliram sanções criminais contra relacionamentos homoafetivos
https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_sodomia_nos_Estados_Unidos

(3) Sobre Stonewall Inn e o reconhecimento por direitos:
https://www.hypeness.com.br/2018/06/como-as-revoltas-de-stonewall-na-ny-de-1969-empoderou-o-ativismo-lgbt-para-sempre/

(4) Sobre a importância das mulheres na revolta
https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2020/11/ponto_debate_ed21_final.pdf

(5) Sobre Harvey Milk
https://pt.wikipedia.org/wiki/Harvey_Milk

(6) Sobre os movimentos LGBTQIA+ no Brasil.
https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-o-movimento-lgbt-brasileiro-40-anos-de-luta/

 

 

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