LGBTQIA+ - PARTE 5: CAMPOS DE CONHECIMENTO CONTRA A IDEOLOGIA DE GÊNERO

 

“Não se trata de negar as diferenças sexuais e corporais entre homens e mulheres, mas de compreendê-las não como naturais e determinadas, mas como relações sociais e de poder, que produziram hierarquias e dominação.” (trecho de Gênero: Uma Categoria Útil de Análise, de Joan Scott).

 

Qual a sua opinião sobre a recente polêmica envolvendo os trajes da seleção feminina de handebol norueguesa, quando as atletas foram multadas por usarem shorts, ao invés dos biquínis que a Federação obriga? Existe algum estudo das Ciências do Esporte sobre a possibilidade de que o uso de biquínis produza algum ganho de rendimento ou redução do risco de lesões, de acordo com a anatomia e fisiologia dos corpos femininos?

Se não existe tal estudo, então, o tema deixa de ser uma polêmica, na qual cada um tem uma opinião e passa a ser, sim, objeto de um discurso ideológico. Sim, a ideologia de gênero pode existir. E quando entramos no campo das subjetividades, das opiniões, é necessário nos aproximarmos de outro campo do conhecimento, que é o campo das Ciências Humanas e Sociais, pois são elas que estudam como processos históricos e sociais são capazes de construir e de guiar nossas subjetividades, nossas opiniões, de condicionar nossas verdades, expondo processos que evidenciam o discurso ideológico.

A questão acerca do uso de uniformes mais colados ao corpo e mais cavados pelas atletas femininas é antigo e remete à década de 1980, quando até Hortência, uma das maiores atletas brasileiras, comentou que o uso de shorts mais curtos poderia trazer mais público para prestigiar o basquete feminino. Ampliando nosso olhar, saindo da questão da Ciência dos Esportes de alto rendimento e pensando a partir da sociedade em que vivemos: é possível perceber a existência de um interesse em deixar o corpo feminino em evidência?

Se você considera esta pergunta pertinente, saiba que acabou de adentrar ao campo dos estudos de gênero e sexualidade. Sim, a universidade, enquanto lugar de pesquisa, agregou ao seu universo os estudos de gênero ao longo do século XX, juntamente ao crescimento do movimento feminista, que questiona o papel inferiorizado das mulheres nas sociedades ocidentais. À elas, as mulheres, caberia apenas o dever gerar filhos e cuidar da casa e da família.

Simone de Beauvoir foi uma das primeiras a questionar a ideia de gênero como vinculada a diferenças naturais, ao sexo biológico.  Sua célebre frase: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” transpassa o campo da opinião para se colocar como um marco teórico. De que forma isso acontece?

As Ciências Humanas e Sociais podem ser identificadas como Ciências discursivas, na qual narrativas sobre um fato são criadas a partir de métodos capazes de “controlar” nossas subjetividades e preferências. O pesquisador não se contenta em afirmar que homens são diferentes de mulheres, por exemplo, mas tenta explicar como surgem estas diferenças e se ela produzem discriminações.

Chegamos às décadas de 1960 e 1970, momentos da contracultura e da revolução sexual feminina. É neste período que também os movimentos GLS ganham visibilidade em sua luta pelo reconhecimento de direitos. Lembra-se de Stonewall? Gays, lésbicas e simpatizantes se movimentaram, revoltaram-se para ter reconhecidos os seus direitos a viver e se relacionar com pessoas do mesmo sexo. Direitos e transformações sociais não se constroem a partir de opiniões, mas a partir da crítica à sociedade que reconhece ou exclui pessoas a partir de suas opiniões, crenças e… sexualidades.

Neste momento, os estudos sobre gênero e sexualidade também ganham a atenção das universidades como campo de estudo, mas ainda restrito ao formato de tema ou objeto. Por exemplo: você pode estudar as relações de gênero e sexualidade na Inglaterra do século XIX.

Agora, vamos introduzir mais um ponto: se você resolver estudar este mesmo tema, mas a partir das obras de Oscar Wilde ou Virginia Woolf, você terá de lidar com outros elementos: terá que tentar compreender as subjetividades desses autores, que, diga-se, são subjetividades de pessoas cujas relações eram de orientação homoafetiva. Seria ela a mesma subjetividade de uma pessoa heterossexual?

A sigla e o movimento GLS avançou para dar conta da diversidade e, além da sexualidade, as pessoas transgênero reivindicaram seu reconhecimento. Sylvia Rivera fez duras críticas aos gays e lésbicas num discurso da década de 1970 contra a invisibilidade e o papel inferior atribuído às pessoas transgênero, inferiorizadas ao papel de travestis, trabalhadores que, muitas vezes, só tinham na prostituição das ruas uma forma de ganho financeiro para prover seu sustento.

Voltemos agora até a década de 1980, de Hortênsia, em que os uniformes das meninas do basquete foram discutidos como elementos para atrair mais público torcedor. Nessa mesma década, pesquisadoras como Joan Scott e Judith Butler contribuíram para um possível redimensionamento das questões de gênero e sexualidade como campo de estudo. Com elas, gênero e sexualidade não deveriam ser apenas vistos como objetos e temas de estudo dentro das Ciências Humanas e Sociais, mas sim como categorias de análise. O que pode significar isto?

Vamos relembrar que, para se estudar a Era Vitoriana Inglesa a partir de Oscar Wilde, deveríamos ter em conta sua subjetividade de uma pessoa gay, vivendo numa Inglaterra burguesa, machista e conservadora. Como será que ele via essa Inglaterra? Gênero como categoria de análise (o como vamos interpretar) e não como tema ou objeto (o que será interpretado) é fundamental para superar a ideia de gênero como um sistema binário natural e se colocar como forma de problematização e desconstrução.

Judith Butler, em 1989, em seu livro Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, amplia a discussão pela necessidade de se desnaturalizar o sexo como fênomeno biológico e gênero como fenômeno cultural, historicizando-os pelo questionamento da existência de um sistema heteronormativo, cuja ideologia reconheceria apenas homens e mulheres, sendo ao homem reservado o papel mais importante.

O reconhecimento da validade de gênero como uma categoria de análise pode produzir uma revolução nas Ciências e na sociedade, pois, não seria uma subjetividade, um olhar “trans” (que significa “ir além”), aquele algo mais que nos falta para, parafraseando o poeta Manoel de Barros, sermos capazes de transver o mundo, para irmos além do mundo que temos hoje?

 

Sobre os uniformes das atletas:

https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/2021/07/20/time-feminino-de-handebol-de-praia-da-noruega-e-multado-por-nao-jogar-de-biquini

http://globoesporte.globo.com/platb/meiodecampo/2012/01/17/uniforme-sexy-de-basquete-causa-polemica-na-europa/

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk1906200545.htm

 

Referências bibliográficas

Sobre Joan Scott e Judith Butler e a ideia de gênero como categoria de análise:

https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667

https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/riesup/article/view/8659104/22710

http://comunica.ufu.br/noticia/2019/03/por-que-universidades-estudam-genero

https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Jpu9Ms10YigJ:https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/download/31253/18342+&cd=6&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br

 

Sobre as diferenças entre ideologia de gênero e Estudos de Gênero

https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/30669/ideologia-de-genero-x-estudos-de-genero/

https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/

Uma cronologia dos estudos de gênero

https://pt.wikipedia.org/wiki/Estudos_de_g%C3%AAnero

 

Vídeos:

O Conceito de Gênero na Antropologia

https://youtu.be/kZOPRKVQuAw

Sobre Ideologia de Gênero

https://youtu.be/9kowwGuS_-8

Sobre Virgínia Woolf

https://www.esquerdadiario.com.br/Virginia-Woolf-uma-referencia-para-o-feminismo-e-a-visibilidade-lesbica

 
 

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