BIBLIOTECA PÚBLICA LUGAR DE CONHECIMENTOS - PARTE 5: Trabalho - Os xamãs yanomami não trabalham por dinheiro (...). Trabalham unicamente para o céu ficar no lugar, para podermos caçar, plantar nossas roças e viver com saúde. - Davi Kopenawa

 "Quando os índios falam que a Terra é nossa mãe, dizem ‘Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita’. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo” (Ailton Krenak).

Temos apresentado aqui no Portal da Cultura um pouco sobre diversos aspectos da vida dos povos indígenas brasileiros: suas ciências, sua educação, suas artes, sua cosmovisão. Todos eles contam um pouco sobre a complexidade dessas sociedades, mas, seria correto falarmos em sociedades complexas ou seria esse um termo que revela nossa ignorância e distanciamento sobre as formas materiais e simbólicas de viver e de se relacionar dos povos indígenas brasileiros?

Pois, para as sociedades que se entendem como parte de uma civilização ocidental, nos parece que o parâmetro para definir se uma sociedade é mais ou menos civilizada, parte de uma ideia de maior elaboração e complexidade de sua cultura. Daí, novamente citando Ailton Krenak, “esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da História” (trecho do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo).

A fala de Krenak nos convida a refletir um pouco sobre como entendemos, ou não, a produção das condições materiais para a sua existência, extraídas da força e da organização do seu trabalho e qual sua relação como índice de civilização. A partir de sua cosmovisão, entendemos que seu espírito, sua cultura está umbilicalmente ligado ao planeta, que algumas sociedades chamam de terra-floresta (“urihï” na língua yanomami). Você já parou para pensar por que tal constatação muitas vezes pode nos causar estranheza, um incômodo mesmo?

Parece que o fato de reconhecermos isso implicaria em dizer que, como desdobramento da comparação com nossa organização social, os povos mais próximos da Natureza são considerados mais simples, menos civilizados. Uma das origens dessa comparação hierárquica pode ser identificada no esforço filosófico do alemão Friedrich Hegel que, no final do século XVIII, concebeu o trabalho como a materialização de uma ideia e também uma forma de se distanciar da Natureza, numa tentativa de dominar o mundo natural. Em seu idealismo, força e espírito trabalhariam juntos e nos distanciariam da “terra-floresta.”

Aqui, voltamos ao nosso trecho inicial. Entre os povos indígenas, eles mesmos são um terminal nervoso da Terra, a Natureza não está em oposição a eles; ao contrário, o seu trabalho é conscientemente realizado junto com a Natureza. Isso é muito importante para reforçar que não existe a submissão dos povos indígenas aos ritmos da “terra-floresta”. Eles trabalham juntos, mesmo na agricultura ou na caça. Isso é importante porque algumas interpretações usam essa relação como índice de maior ou menor grau de civilização.

Bem antes de Hegel, os jesuítas, durante o processo de colonização do século XVI, costumavam defender a catequização, justificando sua escravização e exploração do seu trabalho, os colocando como ingênuos, que não haviam comido do fruto proibido, que era o conhecimento. Interessante, não? 

Todos eles em suas comunidades possuem funções e realizam trabalhos, geralmente organizados de forma coletiva, assim como a Natureza, que sempre busca o equilíbrio de seu bioma e ecossistemas. Essa organização é produto de uma escolha, de observar e entender o funcionamento dos ciclos naturais e os utilizar ao seu favor. Entre nossos povos indígenas, seu trabalho é um meio de preservar o equilíbrio do mundo natural. A produção material de sua existência não se converteu num mecanismo sistemático de exploração dos recursos naturais, como nos apresenta o líder yanomami Davi Kopenawa:

“A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão."

Nós, os brancos, somos chamados de “napëpë” entre os yanomamis. Povo de uma riqueza mítica, orgulhosos de sua origem, em sua cosmovisão, os “napëpë” (estrangeiros, inimigos) foram criados da espuma do sangue “(...) de um grupo de ancestrais yanomami levado por uma enchente após a quebra de um resguardo menstrual e devorado por jacarés e ariranhas. A língua "emaranhada" dos forasteiros lhes foi transmitida pelo zumbido de Remori, o antepassado mítico do marimbondo comum nas praias dos grandes rios. (...)”. Nosso primeiro contato com as sociedades yanomamis foi entendido, por eles, como fantasmas que queriam voltar à vida dos homens.

Se a cosmovisão dos povos indígenas tem a convergência e a integração por princípios, sendo capazes de integrar a contradição e os contrários, todo trabalho despende uma energia ritual também e daí chegamos ao final percebendo que, talvez, seja preciso rever um conceito de civilização cuja ideia de trabalho esteja associado ao dispêndio de energia vital para transformar a Natureza, para domesticar a “terra-floresta”.

No clássico filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, o diretor Stanley Kubrick aponta um elemento muito interessante na clássica cena do hominídeo apropriando-se de um fêmur (maior osso do corpo humano) e o utilizando como um martelo, logo depois como um porrete. O corte nos leva ao futuro, em que os seres humanos dominam a tecnologia de vôos espaciais e criam a inteligência artificial, o Hal9000. Na visão do diretor e do autor do livro, a invenção da tecnologia na Idade da Pedra logo se torna um instrumento de poder, de dominação de outros grupos. E Hal9000, exaltado como o grande milagre tecnológico da Humanidade, vai se valer dessa tecnologia também para se autopreservar.
Cabe outra comparação significativa com a maneira como os povos indígenas brasileiros vêm se apropriando de nossos recursos tecnológicos, das redes digitais e virtuais de comunicação. Para eles, as novas tecnologias e redes sociais servem para divulgar e preservar suas culturas.

Por isso trabalho, ciência, arte e educação são modos integrados de produzir sua existência material, sendo impossível de se pensar esses fazeres como modos alienados, apartados da Natureza.

 

Links:

Sobre conceito físico de trabalho:

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Trabalho_(f%C3%ADsica)

Vídeo sobre trabalho em Hegel:

https://youtu.be/1x2rPsEE3tc

Davi Kopenawa falando sobre arte e cultura entre os yanomamis:

https://youtu.be/3JeZQBGwvoo

Entrevista de Ailton Krenak:

https://pib.socioambiental.org/en/Not%C3%ADcias?id=206082

Excelente material sobre os yanomis, com diversos vídeos e textos produzidos pelos próprios indígenas:

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yanomami

Site da organização Povos Indígenas no Brasil, com informações sobre todos os povos indígenas que vivem no Brasil:

https://pib.socioambiental.org/pt/Página_principal

Sobre as relações entre tecnologia e poder no filme 2001, uma odisseia no espaço:

https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/7132/DissMJVF.pdf?sequence=1&isAllowed=y

 

 

 

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