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Prof. Dr. Leonardo Tonus

Prof. Dr. Leonardo Tonus

30 de Jun de 2017

Natural de São Paulo, mas sãobernardense de coração, Leonardo Tonus é professor livre docente e Coordenador do Departamento de Estudos Lusófonos na Université Paris-Sorbonne (França).  Membro do Conselho Editorial e do Comitê de Redação de diversas revistas internacionais, atua nas áreas de literatura brasileira contemporânea, teoria literária e literatura comparada, com pesquisas sobre imigração. Nesta sua passagem pela cidade que adotou, Leonardo, que também é curador da Primavera Literária Brasileira em Paris, se propôs a realizar três encontros, com três propostas diferentes para atender a todos os públicos, todos eles guiados pelo tema Olhares Estrangeiros e conversou, sobre este e outros assuntos com o Guia da Cidade.

 

Guia da Cidade: Quando chegou à França, quais eram as referências sobre Literatura Brasileira e quais são hoje?

Leonardo Tonus: A França foi um feliz acaso em meu percurso universitário e profissional. Cheguei a Paris em 1988, mas com a nítida intenção de me dirigir à Alemanha e aperfeiçoar meus estudos em música contemporânea. À época, frequentava o 4° ano do curso de Composição e Regência da UNESP e o 3° ano em letras (alemão-latim) da USP. Em vista de minha formação vejo hoje o quão clássica foi minha formação e era, na altura, minha visão da produção literária nacional. Poucos cursos abordavam na USP a literatura contemporânea, situação que, curiosamente, se repetia na universidade francesa no âmbito dos chamados Estudos Lusófonos. Líamos e estudávamos somente Machado de Assis, os poetas arcádicos, os modernistas e alguns regionalistas. Eu diria que foi pelo viés da literatura francesa que se deu minha entrada na produção romanesca, poética e teatral brasileira atual. A necessidade de expressar-me corretamente em francês transformou-me num leitor ávido (quase bulímico), que devorava tudo o que encontrava nas bibliotecas públicas de Paris, sobretudo em textos cuja linguagem e cuja problemática se aproximavam do meu cotidiano. A literatura tornou-se então uma maneira de entender o mundo e a situação que vivia, próxima de minha história familiar. Sou, por parte de pai, neto de italianos originários do Veneto e, por parte de mãe, de portugueses transmontanos e natos em Angola. A vizinhança da rua em que morava, durante minha infância em São Paulo, formava um mosaico cultural. Ela compunha-se de alemães, russos, espanhóis, nordestinos, árabes ou judeus. Muitos dos pais e dos avós de meus amigos não falavam português. Ir brincar na casa de um deles era como se aventurar por um mundo novo. Lembro até hoje do impacto que me causou a visão de um furô japonês em plena sala de estar. Doces árabes eram frequentemente compartilhados entre as crianças durante a recreação da escola. Minha vizinha japonesa vinha todos os dias em casa totchar conosco seu pão na xícara de café com leite.  (totchar, variação familiar do potchar dos italianos do Brasil e que significa inserir pão ou outro alimento em algum líquido). Desde minha chegada à França, interesso-me por textos que exploram o estado da migrância e que expõem as dificuldades e dores encontradas por aqueles confrontados a deslocamentos territoriais, identitários, temporais e de gênero.  Dentre minha novas referências na literatura brasileira constam assim Clarice Lispector, Samuel Rawet, Milton Hatoum, Raduan Nassar, Marcelo Maluf, Carola Saavedra, Sheyla Smanioto, Adriana Lisboa, Ana Martins Martins, Maria Valéria Rezende, Natália Polesso, entre tantos outros.

 

Guia da Cidade: Como surgiu a ideia da Primavera Literária Brasileira?

Leonardo Tonus: Em 2003 tornei-me professor de literatura brasileira na Universidade da Sorbonne. Desde então tive o prazer e a honra de receber em meus cursos grandes, nomes de nossa produção nacional, como os acadêmicos João Almino e Ana Maria Machado; os premiados Michel Laub, Luiz Ruffato, Julián Fuks, Maria Valéria Rezende, Márcia Tiburi e os jovens Alexandre Staut, Franklin Carvalho, Luisa Geisler, Nilma Lacerda, Marcelino Freire, Lúcia Hiratsuka, entre vários outros. Meu objetivo sempre foi fazer da Sorbonne um espaço voltado para a cultura brasileira. Face ao sucesso desses encontros, que visavam despertar o interesse da literatura brasileira junto a meus estudantes, decidi criar um festival: a Primavera Literária Brasileira, que hoje vai para a sua 5° edição. O festival tornou-se, desde 2016, um encontro europeu com debates e leituras organizados em diversos países durante o mês de Março.

 

Guia da Cidade: Qual o perfil dos alunos europeus que se interessam por nossa Literatura? O que eles mais gostam em nossos autores?

Leonardo Tonus: A França conta hoje com a maior comunidade de portugueses expatriados na Europa. Os descendentes destas famílias constituem o principal contingente de estudantes que se inscrevem nos cursos de português da Sorbonne. Mas há alguns anos observo uma mudança no perfil sociológico de meus estudantes. Para além de brasileiros e brasileiras natos na Europa, muitos franceses e estrangeiros têm frequentados meus cursos: tchecos, lituanos, alemães, chineses. Este ano terei o prazer de receber um búlgaro nas aulas sobre Carlos Drummond de Andrade. Nunca é fácil conhecer as expectativas dos estudantes, mas vejo neles um interesse particular pela vitalidade de nossa produção contemporânea capaz de enfrentar todos os tabus até em obras voltadas para um público infantil. 

 

Guia da Cidade: O que surgiu primeiro em sua vida, a Literatura ou a Música?

Leonardo Tonus: Meu interesse pela música e pela literatura surgiu conjuntamente em São Bernardo. Não nasci no ABC. Meus pais mudaram-se para cá em 1977, quando tinha 10 anos de idade.  Considero-me, no entanto, um sãobernardense, pela maneira como esta cidade influenciou meu percurso e minhas escolhas. Em São Bernardo tive minhas primeiras aulas de violão e, posteriormente, de teclado, com José Luís Marinelli que cuidava da banda do restaurante São Judas. Zé Luís, como o tratávamos, é um músico excepcional que formou meu gosto musical e orientou, a mim e minha irmã, profissionalmente.  A paixão pela literatura devo a duas sãobernardenses: Dona Delmina, minha professora de português no ginásio Geraldo Hypólito e uma bibliotecária da Monteiro Lobato, cujo nome não me lembro.  A primeira instituíra em sala de aula um sistema de notação inovador baseado no número de páginas lidas. Eu era um garoto rebelde e com toda minha audácia fui a Monteiro Lobato buscar o mais espesso livro de que dispunham. Para casa trouxe um Thomas Mann e a autobiografia de Henri Charrière, o Papillon, cuja história me marcou profundamente.  A partir daí não parei mais de ler e todas as semanas emprestava livros que compartilhava com minha mãe.  Não posso dizer que minha formação tenha sido das mais canônicas. Era obrigado a ler, obviamente, José de Alencar ou Machado de Assis. Mas o que eu gostava mesmo era do universo Sex drug and Rock ‘n’ Roll, do Sidney Sheldon, e do terror de Stephen King. A censura ainda existia nos anos 1980. Havia filme proibidos para menores de 21 anos e livros que um jovem estudante como eu não podia ler. Mas a bibliotecária da Monteiro Lobato fazia vista grossa, certamente surpresa de rever todas as semanas aquele garoto cheio de espinhas voltar para casa carregado de livros, discos e gibis. Sempre digo que não há um único caminho para a literatura. Como também não há livros difíceis. O mais importante é encontrarmos a chave que nos permita penetrar seus mundos. Dona Delmina e a bibliotecária da Monteiro Lobato ofereceram-me esta chave. E, sob seus conselhos, pude descobrir posteriormente novos universos compostos de Drummond, de Cecília Meireles e tantos outros.

 

Guia da Cidade: Você fará alguns eventos na principal biblioteca da cidade, a Biblioteca Monteiro Lobato. Qual a importância dessa biblioteca para você, e que outros lugares da cidade te marcaram?

Leonardo Tonus: São Bernardo era na década de polo cultural importante. Para além de suas inúmeras bibliotecas, a cidade dispunha de teatros com uma programação cultural inovadora. Neles pude assistir a excelentes espetáculos musicais. De Tetê Espíndola a Arrigo Barnabé passando por Tarancón e Premeditando o Breque, entre outros, todos os jovens grupos independentes da época passavam pela cidade. Lembro-me também dos festivais de teatro da cidade. Em São Bernardo assisti ao Vida e morte Severina e ao musical Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que tentei montar com meus amigos do Wallace, para o desespero da diretora da escola. Salvo engano meu, havia também na época um festival de música para jovens de que participei. São Bernardo dos anos 1980 era uma cidade rebelde cujo pulsar se projetava em todos os seus jovens habitantes. 

 

Guia da Cidade: Na oficina com jovens vestibulandos você abordará algumas obras obrigatórias no vestibular. Como você, pedagogo como se nomeia, vê a relação do jovem contemporâneo com a Literatura? E do seu ponto de vista, de que forma a tecnologia alterou essa relação?

Leonardo Tonus: A tecnologia alterou as nossas vidas e não somente a dos jovens. Ela teve, em minha opinião, uma influência avassaladora em nossa percepção do tempo. Entre celulares, facebooks, instagrams e whatsApps, somos pessoas sem tempo. Sem tempo para os amigos. Sem tempo para as conversas nos bancos das praças. Sem tempo para leitura.  Ora, toda leitura requer tempo e, sobretudo, a abstração do tempo real em que vivemos. Ler um livro é deixar-se levar por uma nova temporalidade e gastar o tempo sem fazer nada, a priori. Ocupados em dialogar com todos os nossos grupos pelo mundo afora, transformamo-nos em seres sem tempo e refratários ao silêncio que exige o tempo da leitura. A nós pedagogos, cabe propor (e nunca impor) aos nossos estudantes a possibilidade deste outro tempo, do silêncio da leitura com nós mesmos. Sim os jovens lêem menos.  Como lêem menos os nossos professores. Eu também leio menos. Mas os jovens não mudaram. Eles continuam jovens valendo-se sempre da mesma sede de conhecimento que a leitura pode proporcionar, quer seja por livros ou por telas de computadores.  Já não sou jovem, mas, como todos os jovens, leio facebook, consulto blogs, escrevo literatura twittter e componho poesia instagram. Como fazer com que jovens leiam se ignoramos ou não respeitamos o tempo em que vivem ?  Tenho muito que aprender com os jovens para quem sabe, um dia, venham visitar-me e visitar meus livros. Ler é como visitar um amigo que ainda não conhecemos. Não sabemos o que vamos encontrar em sua casa e por isso, muitas vezes, temos medo de ultrapassar a porta de entrada. Enquanto pedagogo e professor universitário, minha função é de abrir a minha casa-livro ao meu jovem estudante e leitor.  E a ele oferecer café, pão e, quem sabe, até um bolo de chocolate.